sexta-feira, dezembro 22, 2006

Mochila às Costas



De partida para o Egipto, para mais uma imersão no deserto. Uma caminhada de 90 kms atrás de uma caravana de camelos na zona oeste do Egipto, perto da fronteira com a Líbia cujos pormenores se podem espreitar aqui. À minha espera está uma paisagem quase irreal: rochas brancas que sobressaem do ocre da areia como se de enormes suspiros se tratassem. Noites ao relento num hotel de milhares de estrelas, o silêncio, a magia das areias... E o regresso à civilização a 3 de Janeiro.

J'ai toujours aimé le désert. On s'assoit sur une dune de sable. On ne voit rien. On n'entend rien. Et cependant quelque chose rayonne en silence.

Antoine de Saint-Exupéry

domingo, dezembro 03, 2006

Are you ready for the rapids?


As tumultuosas águas do Zambeze são palco para o que é conhecido como ``o rafting mais selvagem do mundo''. Uma sucessão impressionante de difíceis rápidos de grau 5 e 6, que incluem violentos turbilhões, desníveis acentuados com perigosas rochas semi-cobertas. E, claro, inevitáveis quedas na água esperam todos quantos se atreverem.
Demasiado arriscado para a senhora de provecta idade que sou! Assim, optei pela emoção controlada do ``jet boat'' nos rápidos, uma, mesmo assim, aventura intensa, com rápidos de classe 3, 4 e 5. E é num barco de 6 metros com dois motores de 350 cavalos, que enfrentamos a impressionante muralha de água das quedas, junto ao rápido "against the wall", a escassos metros da catarata onde a água cai com tanta violência que é difícil manter os olhos abertos, e mergulhamos, literalmente, nas águas do rápido número 2. De cortar a respiração!


Mas, ... passo a palavra à Nicole, companheira desta e de outras aventuras, que é também a autora da fotografia que acompanha este post:

Après avoir vu les chutes du haut et de très haut (hélicoptère), nous les approchons enfin de très près. Un petit tour en jet-boat, pour avoir quelques sensations sans danger. Pour le rafting, c'est d'un niveau trop élevé pour nous. Après avoir descendu un "chemin" très scabreux, le Zambèze est là, à nos pieds... Le bruit est encore un peu sourd.... Equipement, embarquement. C'est parti ! Et les sensations seront plus fortes que prévues ! Nous serons bien sûr douchées et redouchées par les rapides, ballotées à gauche, à droite, en haut, en bas.... Mais le plus impressionnant est d'approcher de très près le point de chute des eaux: nous en sommes à environ 15 mètres. On devine depuis le ciel bleu, loin, tout là-haut, derrière un bout d'arc-en-ciel..... même les yeux remplis d'eau et d'embruns. On est au coeur de deux très forts courants, rapides tumultueux, qui arrivent de part et d'autre de l'embarcation avant de s'engouffrer dans le Zambèze déchaîné, prisonnier de la profonde fracture de basalte. Ce Zambèze là n'a rien à voir avec celui d'avant les chutes, si calme, paisible, large, silencieux. Ici, le bruit est assourdissant. Les chutes sont fortes, puissantes, majestueuses.


Se bem que nada se compare às realidade das sensações vividas, o ficheiro Jetboat Showreel dá acesso a um pequeno vídeo da actividade.

terça-feira, novembro 28, 2006

3-2-1! Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah..... (Bungee Jumping nas Cataratas Vitória)


Não é uma ponte qualquer a que, a poucos metros das cataratas Vitória, une o Zimbabwe e a Zâmbia. A ideia deve-se a Sir Cecil Rhodes que queria que os passageiros dos comboios que aí passassem recebessem na cara as águas das cataratas.

Build the bridge across the Zambezi where the trains as they pass will catch the spray from the falls.

E foi precisamente na ``no man's land'', num vagão parado sobre a ponte, que decorreram as negociações da independência da Rodésia que dariam origem aos actuais Zimbabwe e Zâmbia. Se nos nossos dias perdeu a importância estratégica ganhou fama entre os muitos turistas que visitam as cataratas.
Do alto da ponte, com as quedas de água ao fundo, num vôo de 111 metros de adrenalina pura, os mais corajosos testam os limites da mente e do medo lançando-se no vazio sobre os rápidos do Zambeze.
Escusado será dizer que a tanto não me aventurei e que me limitei a assistir às performances dos bravos saltadores que, depois do feito são içados de volta à ponte à força de braços humanos.

E, não tendo recordações de um salto particular para mostrar, fica aqui o filme de um salto encontrado ao acaso no Youtube.

domingo, novembro 05, 2006

Zimbabwe - Cataratas Vitória




Apesar de tidas como uma das 7 maravilhas naturais do mundo, património mundial da Unesco, foi com alguma suspeição que cheguei às cataratas Vitória. Anunciada como a ``capital da adrenalina de África'', a cidade de Victoria Falls, junto às cataratas, não augurava nada de bom. As páginas dos guias de viagem são pródigas em prometer inesquecíveis vôos de helicóptero ou ultraleve, bungee jumping, rafting e jetboat nos rápidos do Zambeze, safaris de elefante e passeios com leões, cruzeiros a montante das quedas ... tudo para ocupar e entreter os visitantes.
Esperava, assim, encontrar algo parecido com as cataratas de Niagara: quedas de água lindíssimas mas rodeadas de néons, comércio desenfreado, casas de fast food, lojas de recordações kitsch, americanos gordos e barulhentos, bandos de japoneses a metralhar incessantemente as cataratas com a fúria de paparazzi.
Enganei-me, felizmente. A cidade, não é, de modo algum, uma típica cidade africana, nem permite que se tenha um vislumbre do que é o Zimbabwe, mas , apesar das muitas agências que comercializam as actividades e de um comércio dirigido a nós, turistas, é uma cidade tranquila.
E as cataratas Vitória, a escassos um ou dois quilómetros da cidade, magnificamente enquadradas no parque natural que leva o seu nome, são um oásis de paz, de comunhão com a natureza. Durante algumas horas passeámos por uma floresta tropical, por entre carreiros cuidados, vimos as quedas de perto e de vários ângulos, cumprimentámos a estátua de Livinsgstone, bebemos água dos salpicos que nos deixaram ensopadas.
E, diga-se em abono da verdade, pela beleza das cataratas e pelas impressionantes características geológicas, o título de maravilha do mundo natural é mais do que merecido.

terça-feira, outubro 17, 2006

Zimbabwe - Mosi-oa-Tunya

Conhecemo-las como Cataratas Vitória, o nome com que, em 1805, David Livingstone as baptizou, em homenagem à rainha que, na época, governava o império britânico. Chamavam-lhe os locais Mosi-oa-Tunya, o fumo que troveja. Serpa Pinto, no seu "Como eu atravessei África" sugere o fumo que se levanta, e explica:
[...] Mozi-oa-tunia é uma frase já feita, quotidiana, vulgar na linguagem dos Basutos. Quando o marido volta a casa e pergunta à mulher se a comida está ao fogo, ela respondeu-lhe mozi-oa-tunia, "o fumo que se levanta".
As cataratas, consideradas uma das 7 maravilhas naturais do mundo , são parte da fronteira entre o Zimbabwe e a Zâmbia, local onde as águas do Zambeze se despenham, ao ritmo impressionante de 9100 metros cúbicos por segundo, num sulco de 1,7 km de largura, rasgado num bloco de basalto, para logo se comprimirem numa fenda de 30 metros que as empurra violentamente para a estreita saída conhecida pelas "Portas do Inferno" e para o canal que ziguezagueia por entre impressionantes paredes negras, altas de 120 metros, criando rápidos e redemoinhos dantescos.

domingo, outubro 08, 2006

Zimbabwe - o mítico Zambeze



O grande rio parece fugir de nós, e como sempre, quando muito se anseia por atingir um ponto, mal se calcula a sua distância, nós ardendo de impaciência, pareciam-nos as horas séculos. Finalmente [...] demos vista do colosso.
Hurrah! foi o grito unânime, e, sentando-nos nos alcantis da encosta demos larga à comoção que nos dominava. Que panorama, que quadro dali se desenrola aos olhos dos recém-chegados!
[..] Em baixo, amesquinhado pela distância, serpenteava o Zambeze, resplandecente à luz do Sol, com o seu leito semeado de ilhas e as várzeas cobertas de verdura.

in De Angola à Contracosta – descripção de uma viagem atravez do continente africano
H. Capello e R. Ivens – Officiaes da Armada Real Portuguesa
1886

Menos agitada mas igualmente emotiva foi a nossa chegada ao Zambeze. Ele ali estava, tranquilo, majestoso, aos nossos pés.
E foi de barco, num ritmo deliciosamente preguiçoso, que descobrimos crocodilos que rastejavam até à água, elefantes a procurar alimentos nas margens, cabeças de hipopótamos que emergiam das águas que, pouco a pouco se tingiam de vermelho...

domingo, outubro 01, 2006

Botswana - PN Chobe - Rete mirabile


Era descrita pelos romanos como um híbrido de camelo e leopardo e daí vem o seu nome: giraffa camelopardis. Com cerca de 900 quilos distribuídos por um corpo de 5,5 metros, a girafa é uma espantosa obra da natureza.
A característica que mais salta à vista é o pescoço, longo de 2,5 metros e que tem, como nós, sete vértebras. Dizem os cientistas que não podia ter menos, por causa da flexibilidade, nem mais, pois acarretaria a necessidade de uma maior massa muscular, o que deslocaria o centro de gravidade de tal modo que a girafa estaria em permanente desequilíbrio.
Ser grande tem, por vezes, inconvenientes. Não é um coração qualquer que consegue bombear o sangue até ao cérebro, a uns cinco metros de altura e o coração da girafa é uma máquina poderosa, capaz criar uma pressão arterial suficiente para vencer as alturas. Mas, com tal pressão, como impedir o excessivo afluxo de sangue ao cérebro quando baixa a cabeça para beber? Rete mirabile (rede maravilhosa) , um complexo sistema situado na parte superior do pescoço, foi a resposta da natureza.
E o que dizer da pressão sanguínea exercida na parte inferior das pernas? É de tal modo forte que seria suficiente para que, por capilaridade, o sangue inundasse os tecidos em volta, o que só não acontece graças à pele, extraordinariamente flexível e resistente, que os envolve e impede a passagem do sangue para o exterior dos vasos sanguíneos. É um sistema tão perfeito que foi estudado por cientistas da NASA e fonte de inspiração para os fatos dos astronautas.
Mas maravilhas da girafa não se ficam por aqui. Impossibilitada de se deitar para dar à luz, a mãe-girafa deixa, literalmente, cair as suas crias. Como é que uma girafinha tem de nascer para resistir à queda de 1,5m? Se a primeira parte a sair fosse o pescoço ... partia-se com a força do impacto com o solo. Se saíssem em primeiro lugar os membros posteriores e o tronco, o peso deste, uns meros 70 quilos, exerceria tal força sobre o pescoço que o partia... Como é, então, que a girafa nasce?
Descubra aqui e aqui um pouco mais sobre a girafa.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Botswana - PN Chobe - O que faz correr Dumbo?


O Parque Nacional de Chobe, no norte do Botswana, alberga, nos seus 11.000 quilómetros quadrados, uma espantosa variedade de vida selvagem. Na zona junto ao rio Chobe, onde se concentra larga percentagem de animais, e nas escassas três horas em que por lá andámos, vimos búfalos, hipopótamos, zebras, crocodilos, girafas, elefantes, impalas, kudus e outras ``bêtes a cornes``, pássaros...
Verdadeiramente significativa é a população de elefantes. Fruto de uma bem sucedida política de conservação, começou com um milhar no início do século XIX, escapou ao abate ilegal e intensivo dos anos de 1970 a 1980 e é, hoje, avaliada em cerca de 120.000. Não foi, por isso, grande o nosso espanto com a enorme quantidade que vimos.

Espantoso foi assistir à correria desenfreada de uma pequena manada de elefantes que, envolta numa nuvem de poeira e a barrir, fugia talvez de um leopardo, um dos predadores que se atreve a atacar elefantes.

(Não é o som original, mas, pode ouvi-los aqui )

domingo, setembro 24, 2006

Botswana - Makgadikgadi salt pans



O nome, Makgadikgadi, terra vasta e sem vida, diz quase tudo.
Características das regiões desérticas, as "salt pans'' (que deixo em inglês por desconhecer a tradução correcta) são um pedaço de terra plana, coberta de sal.

Quando estão secas, o que acontece na maior parte do ano, são cinco mil quilómetros quadrados de branco, um branco brilhante que fere a vista, e apenas parecem ter vida nos curtos meses de chuva do verão austral, quando se cobrem de alguns centímetros de água e abrigam várias espécies de aves aquáticas.

É, pois, com surpresa que, em plena estação seca, em vez desolação cativante que esperávamos encontrar, nos deparamos com um bando de pelicanos, a nadar tranquilamente nas águas azuis.

Coisas deste tempo em que nem o tempo obedece a regras...

Parêntesis

(
Abra-se um curto parêntesis para anunciar duas novidades. Mochila às Costas tem agora um contador de visitas e, mais importante, a possibilidade de subscrição de um serviço que avisa das actualizações. Feche-se o parêntesis.
)

quinta-feira, setembro 21, 2006

Como eu atravessei África

Adeus casa, adeus chambre, adeus pantufos, adeus vida tranquila e plácida junto dos meus; aí volvo a correr mundo.
in Como eu atravessei África
Serpa Pinto
1881

Hoje já ninguém vê na África senão um dos vastos quarteirões do mundo, tão próprio à vida como qualquer dos outros conhecidos, tão digno de desvelo como o mais rico dos supracitados, amplo campo de afã commercial, cuja primeira base segura de civilização cumpre ou antes é dever do Europeu explorar, não só no interesse dos seus habitantes, como em proveito do tráfego comum; enfim de esquecido e oculto que foi, tornar-se-á dentro em pouco opulento, cobiçável e assaz visitado, transformando-se num grande centro de consumo para todo o excesso da nossa produção.

in De Angola à Contracosta – descripção de uma viagem atravez do continente africano
H. Capello e R. Ivens – Officiaes da Armada Real Portuguesa
1886



domingo, setembro 17, 2006

Vilakazi Street - Soweto - Joanesburgo


Soweto.
Não, não é uma palavra africana. É o acrónimo de South Western Township. Soweto.
Criado para abrigar os trabalhadores das minas de ouro de Joanesburgo, para lá foram transferidos os habitantes negros que, nos tempos do apartheid, o governo queria ver afastados do centro (branco) da cidade. O Soweto é, hoje, um bairro descomunal de cerca de 3 milhões de habitantes. Tem de tudo. Zonas miseráveis com esgotos a céu aberto, onde uma casa de banho sumária colocada numa guarita é partilhada por uma centena de pessoas. Zonas ricas, ironicamente chamadas Soweto Beverly Hills, onde se estendem as casas e mansões de quem, ao apartheid, deu a volta por cima. Tem oásis de paz e guetos onde poucos se atrevem a entrar. Tem grades nas janelas, nas portas das casas, das barracas e das lojas. Tem marcas do apartheid nos buracos de balas nas paredes da igreja Regina Mundi, nos memoriais aos que cairam a lutar pela igualdade, nos corações de todos. Tem uma música e culturas próprias, fortes.
E tem uma rua única no mundo: Vilakazi Street, a rua onde nas décadas de 40 e 50 moraram dois homens que mais tarde receberiam o prémio Nobel da Paz: Nelson Mandela e Desmond Tutu.

domingo, setembro 03, 2006

África do Sul - nação arco-íris?


Tinha 13 anos e estava entre os 30000 jovens e crianças que, a 16 de Junho de 1976, participaram numa marcha pacífica protestando contra a medida do governo que impunha, como língua única na escola, o afrikaans, falado pela minoria branca.
Atingido por uma bala da polícia que os recebeu a tiro, Hector Pieterson, o menino que na fotografia é transportado ao colo, foi um dos 23 (ou 200 ?) mortos. No local onde caiu, numa rua do Soweto, em Joanesburgo, ergue-se, agora, um memorial e um museu.

Muito mudou desde esse dia e a República da África do Sul é, hoje, um país onde se realizam eleições democráticas.

Não se pode julgar um país pelo pouco que se viu de uma cidade, muito menos quando aí apenas se esteve menos de dois dias e no circuito quase fechado que, por questões de segurança, nos foi imposto.
Mas... o que dizer quando se encontra uma cidade onde as comunidades negra e branca parecem não ter pontos de contacto? Quando uns se deslocam de carro e outros a pé, de bicicleta, de autocarro? Quando as casas, além dos portões firmementemente fechados, dos alarmes, do arame farpado e dos cães, afixam placas a indicar que têm vigilância 24 horas em 24, com resposta armada? Quando hotéis, restaurantes, empresas, são dirigidos, quase exclusivamente, por brancos, cabendo aos negros as tarefas "menos nobres"?

África do Sul, nação arco-íris? Não, ainda não.

quinta-feira, julho 27, 2006

Mochila às costas!

Mochila (quase) às costas !

Dentro de algumas horas parto para Joanesburgo, via Paris, para, no domingo, num camião como o da fotografia, começar o Southern Circle, uma viagem por países africanos.
Não serão muitas as ocasiões para actualizar o blog mas ... I'll do my best!
Entretanto o plano da viagem pode ser consultado aqui
ou, com mais detalhe, aqui


Até já!

terça-feira, julho 25, 2006

Islândia 2000 (parte 7) - Take fyrir

Os postes de electricidade que anunciam a proximidade de Gullfoss, os primeiros que vemos desde há uma semana, marcam o nosso reencontro com a civilização. Como marcante deve ter sido, para os visitantes da magnífica queda de água, a chegada de um grupo de cavaleiros, vestidos de impermeáveis laranja, acompanhados de uma manada de cavalos em liberdade. Nova paragem, em Geysir, a terra que deu o nome a todos os géiseres, para ver o Strokkur, o jacto de água, e chegamos a Hvítárdalur, ponto final da nossa aventura equestre.

Um duche retemperador, um jacuzi ao ar livre, um jantar de festa, a distribuição dos diplomas, a troca de contactos. É já com saudade que olhamos uma última vez para os cavalos. Para trás ficam as memórias de jornadas duras, extenuantes, as feridas, o desconforto. Mas fica, acima de tudo, o prazer indiscritível dos intermináveis tolts e galopes, a emoção imensa de galopar integrado numa manada em liberdade, a natureza rude e majestosa da ilha.

Take fyrir, obrigada!

domingo, julho 23, 2006

Islândia 2000 (parte 6) - o tempo islandês

Contrariamente ao habitual, hoje, o recolher vai ser tardio. Culpa da festa, o serão em que cada um dos participantes neste raid vai ter de falar um pouco do seu país, contar uma história, cantar uma canção. E não foi a chuva que nos acompanhou ao longo do dia, e que nos fez chegar encharcados ao abrigo, que quebrou a animação da noite. Ao longo de várias horas cantámos, jogámos, dançámos, como se o corpo não se ressentisse do esforço a que, nestes dias, o temos obrigado.
Antes de nos irmos, por fim, deitar, Gudrum avisou-nos: "Esperem que amanhã o dia esteja melhor porque, esteja ou não, temos de continuar. E não digam que o dia de hoje podia ter sido pior porque aqui, na Islândia, pode sempre ser pior."

E foi! Chovia forte quando nos levantámos e vestimos a roupa molhada que o frio da noite não permitiu que secasse. Chovia ainda mais forte quando nos apinhámos no barracão apertado para, com estrume e lama até aos tornozelos, aparelharmos os cavalos. Chovia torrencialmente quando Gudrum lançou o terceiro "iá-iá" e partimos. E a chuva enerva os cavalos!

A manada avança num galope desenfreado, um vento fortíssimo empurra-nos da sela, grossas bolas de granizo magoam-nos a cara. Galopamos de olhos quase fechados, às cegas, a um ritmo alucinante. Inclinada sobre o pescoço de Darri, o meu cavalo favorito, o meu flying sofa, num equilíbrio que o vento torna instável e difícil, com a água a entrar pela gola e pelas mangas do impermeável e a escorrer por todo o corpo, apenas vejo à minha frente a garupa do cavalo do Richard e só espero que não se desvie do trilho, que não se perca do resto do grupo.
Mas, por estranho que possa parecer, apesar das roupas ensopadas, apesar do frio, a sensação de prazer e liberdade é indiscritível!

E quando, umas horas mais tarde, Gudrum propôs que fizessemos os últimos quilómetros da etapa na carrinha que tinha vindo ao nosso encontro, recebeu como resposta um sorriso cúmplice e um "iá-iá" em uníssono. E partimos!

quinta-feira, julho 20, 2006

Islândia 2000 (parte 5) - A canção do bandido


Ao quarto dia de viagem chegamos a Hveravellir, área geotermal com fumarolas e nascentes de água quente. Reduzidos, até aqui, à lavagem sumária que as torneiras ao ar livre têm possibilitado, a hipótese de um banho, mesmo que sem sabonete, é vista como a supra essência do luxo.
Dez horas de uma noite ainda muito clara. Descalços, e a tiritar de frio, percorremos as duas ou três centenas de metros que separam o nosso abrigo da piscina natural. A temperatura exterior, a fazer fé no relógio do suíço Peter, é de 8º. À nossa espera, as águas sulfurosas da "piscina", temperadas pelas de um riacho de montanha, devem rondar os trinta e muitos.

Durante duas horas ali ficamos, em banho-maria, imersos até ao pescoço, no mesmo local onde, num distante inverno do século XVIII, se aqueceu o fora-da-lei Fjalla Eyvindar, que ali se abrigou com a família.

Atravessava a Islândia um período de miséria. Sucessivos invernos invulgarmente rigorosos, a que se juntaram os não pouco frequentes tremores de terra, conduziram à morte de um quinto da população e de três quartos do gado. O roubo, em particular o roubo de comida, era considerado o mais grave dos crimes, pior que um assassínio ou uma violação.
Acusado de se apoderar de um queijo, Fjalla é banido da sociedade, proscrito. A partir de então qualquer um que o encontre tem o direito de fazer justiça pelas suas próprias mãos. Com a mulher, Halla, refugia-se no interior da ilha, tão rude e duro que poucos se atrevem a persegui-los. Para sobreviver não lhe resta outra hipótese senão a de roubar gado, aumentando, assim, a ira e o desejo de vingança dos seus conterrâneos, o que os obriga a saltitar de buraco em buraco, à medida que os perseguidores lhes descobrem o rasto.

A desolada e estéril região de Hveravellir, e uma gruta com menos de um metro de altura, foi um dos seus esconderijos. Uma canção popular islandesa descreve o momento trágico em que Halla atirou o filho recém-nascido para uma queda de água quando, num inverno particularmente duro, a comida se tornou ainda mais escassa.

segunda-feira, julho 17, 2006

Islândia 2000 (parte 4) - O cavalo islandês


Mais pequeno que a maior parte dos seus congéneres europeus, robusto e maravilhosamente adaptado à dureza do clima e dos solos, o cavalo islandês apresenta a particularidade de não limitar os seus andamentos aos habituais passo, trote e galope. Por não ter sido treinado para as lides da guerra manteve duas formas de andar, o tolt e o pace, que os outros, há muito perderam. O tolt, em especial, por ser um andamento muito rápido e suave, faz as delícias de quem anda a cavalo na Islândia.

Diz-se mesmo que, neste andamento, se consegue segurar uma taça de champagne sem entornar uma única gota.
Talvez, mas o melhor que neste momento consigo é um passo estranho, entre o tolt e o trote, que me faz chocalhar desconfortavelmente. A posição a cavalo é diferente daquela a que estou habituada, são outros os músculos que trabalham. E, pôr a trabalhar músculos que não estão habituados, traduz-se numa sensação desagradável que o passar das horas torna doloroso.
Doem os abdominais, as pernas, as costas. Doem as nádegas, que ameaçam ficar em ferida. Doi-me tudo. Com uma das mãos agarro a sela na tentativa, vã, de aliviar o corpo. A única coisa em que sou capaz de pensar é que não vou resistir a tantos quilómetros.

Paramos para matar a sede nas águas deliciosamente geladas de um riacho de montanha, para uma dentada nas sandes do almoço. Afinal estamos todos doídos, com as nádegas em bolha. Gudrum ri-se, garante-nos que é natural, que os dois primeiros dias são assim mesmo, um inferno, mas que, se lhes resistirmos, vai ser maravilhoso. Olhamos uns para os outros e o ar de desalento é tão grande que não somos capazes de deixar de rir.

Ao terceiro iá-iá retomamos a pista...

quinta-feira, julho 13, 2006

Islândia 2000 (parte 3) - iá-iá!


Formamos um grupo heterogéneo: há norueguesas, suecas, americanos, ingleses, suíços, alemães, além dos indispensáveis guias e pessoal de apoio, islandeses. Portuguesa, apenas eu. As idades estendem-se dos 28 aos 71 anos; há estudantes e professores, empregados bancários e engenheiros, contabilistas, reformados, técnicos de aeroporto, agentes de viagens...

Para a maioria de nós, tantas horas, tantos quilómetros diários a cavalo, constituem uma estreia e é difícil não deixar transparecer uma certa apreensão, por detrás do sorriso que nos esforçamos por esboçar.

Mas não temos tempo para pensar: há que escolher os arreios, arrumar o impermeável e o almoço no alforge, ouvir com atenção as instruções básicas que seguiremos nos próximos dias. Num ritual que se repetirá a cada paragem, Gudrum, a nossa sorridente guia, grita um primeiro "iá-iá" e são horas de colocar a cabeçada no cavalo já aparelhado; ao som do segundo instalamo-nos na sela, corrigimos a altura dos estribos, prontos para o nosso primeiro dia, que será longo de 8 horas.

Um terceiro "iá-iá" e partimos.

segunda-feira, julho 10, 2006

Islândia 2000 (parte 2) - Kjolur

Historicamente o Kjolur era um caminho perigoso, entre os glaciares Hofsjokull e Langjokull, infestado de bandidos e proscritos. Crenças antigas reportam-se a crimes violentos e, um dos abrigos onde iremos pernoitar, diz-se assombrado pelo fantasma de uma mulher que, por se ter apaixonado por um criado, foi aí assassinada pelo futuro marido.
Ao longo dos seus 230 quilómetros não se encontram serviços, pontes, nem, por vezes, estradas; existem apenas rudimentares abrigos de montanha onde os viajantes podem descansar ou proteger-se das inclemências do tempo, sempre incerto. Mesmo em Julho ou Agosto neve e granizo não são invulgares, como teríamos oportunidade de constatar. Duzentos e trinta quilómetros que percorreremos em sete dias, cavalgando cinco a nove horas diárias, sem ver qualquer indício de civilização, sem contactar com outras pessoas. Durante sete dias não existirão telemóveis nem televisões, o conforto será reduzido, duche e electricidade luxos esporádicos e bem vindos. Durante sete dias serão os cavalos; os cavalos que é necessário aparelhar e cuidar, os cavalos que, além de companheiros de aventura, constituirão, igualmente, o tema de quase todas as conversas.

quinta-feira, julho 06, 2006

Islândia 2000 (parte 1) - Susanne


"Traduzes-me a letra de Grândola, vila morena"?

Sentada num dos degraus do abrigo de montanha, ao frio áspero de uma clara noite islandesa, olho, surpreendida, para a minha interlocutora: Susanne, alemã, 71 anos. Aos 52 divorciou-se do marido e da vida que levava; para sobreviver fez todos os trabalhos. "Trabalhos de homem, pouco dignos de uma mulher" disse, sem precisar mais. Susanne, berlinense, que sofreu a guerra como a aliada que não era, que festejou a libertação de Paris como se da sua cidade se tratasse, que chorou quando viu erguer-se o muro que rasgou em duas a sua Berlim e o seu coração, que chorou, de novo, quando, com as mãos calejadas pela dureza da vida, lhe arrancou, finalmente, um pedaço, que tornou a chorar quando, num distante dia de Abril, a rádio lhe trouxe a notícia da queda da ditadura de um pequeno país no extremo oeste da Europa.
Susanne que, como eu, integra o grupo que embarcou na aventura de atravessar a cavalo, e em autonomia, o coração gelado e deserto da Islândia, acompanhando uma manada de 75 cavalos em liberdade, percorrendo o lendário Kjolur, um dos dois trilhos que rasgam a ilha de norte a sul.

domingo, julho 02, 2006

Africa Trek 1


Acabei a leitura do primeiro volume de Afrika Trek que relata a fabulosa aventura de Sonia e Alexandre, um casal francês que percorreu, a pé, os 14.000 kms que separam o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, do lago Tiberíades (Mar da Galileia) em Israel.

"...Nous voulons marcher dans les pas de l Homme, d une extremité à l' autre du Grand Rift, [...], refaire symboliquement le "premier voyage" du "premier homme" qui a quitté le berceau de l'humanité pour se répandre jusqu'aux confins du monde. [...] Notre objectif est de rencontrer sur les sites les scientifiques qui nous apporteront des éclairages sur les spécimens qu'ils ont trouvés.[...] Au-delà de ces belles idées nous voulons marcher au coeur de l Afrique d'aujourd'hui en partageant la condition des Africains qui voudront bien nous recevoir chez eux le temps d'un soir et d'un échange, avant de reprendre la route. Arpenter l'Afrique réelle qui dépasse le cliché du guépard au soleil-couchant, et tenter d'échapper au sinistre triptyque guérilla-famine-épidémies. L'Afrique doit être ailleurs, elle est là sous nos pieds, et tout notre projet est enfin réduit à sa plus simple expression, pratique, concrète: commencer !"
in Afrika Trek I
Sonia e Alexandre Poussin
Éditions Robert Laffont, 2004

terça-feira, junho 20, 2006

A máquina


Bucareste, Outubro 1974
Ceausescu governa com mão de ferro uma Roménia triste. A segurança, a saúde e a educação são asseguradas pelo estado. Os bens essenciais também. Os outros, a saia mais vistosa, o brinquedo de cores vivas, há-os nas lojas especiais, apenas ao alcance de uma elite do regime... e dos turistas.

Teria uns 30 anos. Aproximou-se de nós, que atravessávamos a alameda enorme e deserta de acesso ao hotel, e parou à nossa frente:
"A máquina!"
A máquina de filmar que o meu pai trazia a tiracolo e que lhe entregou, sem esboçar qualquer resistência.
Os três, ali parados, suspensos no tempo. Ele, a olhar com adoração a máquina que amparava sobre as palmas das mãos estendidas, como se de uma criança se tratasse. Nós, sem ousar dizer uma palavra, sem quebrar a magia quase religiosa daqueles momentos.
Foi ele a quebrá-la, devolvendo a máquina ao meu pai. Um obrigado sussurrado, um sorriso tímido espelhado nuns olhos húmidos.

Passaram quase 32 anos e, ainda hoje, é com um olhar comovido que revejo esse dia.

domingo, junho 18, 2006

Times are changing

Em 1854 a ilustre Royal Geographical Society publicou um livro de conselhos aos viajantes, de que aqui reproduzo um pequeno excerto:

Se for atacado por uma multidão em fúria no Oriente, magoe uma das pessoas, e faça-o rapidamente. Os outros reunir-se-ão a conversar à volta do homem ferido e você poderá escapulir-se.
Se estiver a acampar quando for atacado fuja da fogueira para o escuro e mantenha-se imóvel. Para captar o mais ínfimo som deixe a boca aberta, pois os seus ouvidos têm uma entrada interior e outra exterior, como as guelras que lhes deram origem.
Se for ameaçado por um cão rafeiro é inútil tentar acalmá-lo com um " cãozinho
lindo". Ao invés disso ofenda-o com a voz mais imperiosa que conseguir fazer e com a linguagem mais rude que lhe ocorrer. Talvez ele se afaste, profundamente envergonhado.

in Hints to Travellers

sábado, junho 17, 2006

Vas y, vaza!




Sendo este um blog dedicado a viagens e a fotografias, não podia começar de melhor maneira: com a partida, para Madagáscar, de 4 grandes amigas. A Rute, a Paula, a São e a Sónia vão percorrer a Ilha Vermelha de Sul a Norte, descobrir lémures e camaleões, nadar sobre corais, mergulhar com tubarões, comer zebu e, principalmente, conviver com o extraordinário povo malgaxe.

Vas y vaza!!