quarta-feira, dezembro 24, 2014

Viagem no tempo


Daqui a umas horitas parto rumo à Etiópia, destino há muito desejado. Parto na madrugada de 25 de dezembro de 2014 e  aterro em Addis Abeba um dia depois, a 17 Thahsas de 2007, uma viagem no tempo e no espaço em companhia de Rimbaud, Corto Maltese e Manuel João Ramos, cujas páginas revisitei com redobrado prazer.
No Mochila às Costas estão já preparados posts que diariamente vãodando conta do que ando a fazer e por onde.

Um bom natal para todos e até dia 26 Tahsas de 2007.

segunda-feira, dezembro 22, 2014

O rio dito o mais bonito do mundo


Na maior parte do ano o Caño Cristales é um rio como qualquer outro mas, por um curto período, algures entre julho e outubro, transforma-se, qual Gata Borralheira, num tapete vermelho vivo, uma vibrante explosão de cores.
A responsável por este espetáculo dá pelo nome de Macarenia Clavígera, planta endémica com trejeitos de prima donna. Para que a menina floresça é preciso que o rio tenha bastante água mas não demasiada, que o caudal não seja forte nem fraco, a temperatura..., a chuva... 



Durante várias décadas a zona foi bastião da guerrilha e por isso inacessível a todos os restantes colombianos e só em 2009 o governo conseguiu abrir a zona a um turismo controlado.  
Em Macarena há que fazer o registo na sede do parque nacional da Serra da Macarena, solicitar um guia, obter o salvo-conduto que permite passar pelos muitos controles militares que temos de passar. Por razões ambientais não é permitido usar repelente de insetos nem protetor solar e o acesso é limitado a um máximo de 160 pessoas por dia. Mas quase todas, famílias colombianas, ficam nos metros iniciais junto à primeira piscina, a tomar banho e almoçar.


Embrenhamo-nos pela garganta deslumbradas pelo contraste das águas coloridas, a as rochas e floresta circundante, refrescamos os pés nas águas cristalinas das piscinas naturais, paramos junto às cascatas, divertimo-nos a conversar e tirar fotografias com um grupo de bem dispotos militares em patrulha pela zona. E não consegui resistir à tentação de encenar uma foto tipo Ingrid Betancourt e FARC. Ai... as mulheres e as fardas!

terça-feira, dezembro 16, 2014

Zombies no Père Lachaise?


Mesmo que se visite muitas vezes uma cidade há sempre coisas a descobrir e Paris tem 2 ou 3 pontos há muito na lista mas que, por esta ou aquela razão têm ficado "para a próxima". Desta vez consegui retirar um deles do rol.

Um dia frio e cinzento de outono - roupagem adequada para visitar os que "já lá estão" - e aqui vamos nós à descoberta do cemitério Père Lachaise. Um panfleto com a indicação de algumas das muitas celebridades que por aqui descansam e, guardando o decoro que o cenário exige, entrámos no jogo de descobrir nomes conhecidos, estátuas, pormenores interessantes.
Piaf, Sarah Bernhardt, Proust, Chabrol, Fourrier, Chopin, Balzac, o Haussman do boulevard, Yves Montant e Simone Signoret, Gay-Lussac, ... todo um friso de nomes sonantes das artes, da ciência, da política...

 

Dois túmulos sobressaem: o de Óscar Wilde,  que teve de ser protegido com acrílico para impedir que os fãs mais ardentes continuassem a deixar marcas de baton, e o de Jim Morrison, dos Doors. Na impossibilidade de se chegarem junto à campa, cercada com grades, há quem não hesite em deixar os cadeados da praxe mas também bilhetes de metro, cigarros e pastilhas elásticas mastigadas. Muitas, muitas mesmo. Vá se lá saber porquê.



E a pergunta que fizemos ("porque é que JM está enterrado aqui?") só teve resposta em casa, com a ajuda do erudito sr Google. (aqui)

Mas o aspeto mais curioso talvez tenha sido a descoberta de um morto-vivo, o arqueólogo Vivant Denon. Há zombies no Père Lachaise!

(Para uma visita virtual e procura de campas siga o link)


quarta-feira, setembro 17, 2014

Os amigos do pedal

 

 
Agonia e Fadiga são nomes de ruas de Bogotá. Só o nome cansa, mas cansa ainda mais saber que as temos de subir. Junte-se-lhe o jet lag, uma noite em branco, os 2600 metros de altitude, uma bicicleta e o empedrado irregular. Aiiiii...

 

Bom, vamos a isso, força nas pernas e partamos à descoberta da cidade. Trim, trim, o bairro colonial da Candelária acolhe as nossas primeiras pedaladas, mostra-nos casas coloridas e graffitis, praças, catedrais e até uma aula de zumba deu alento à nossa passagem.


Trim, trim, de coração apertado seguimos agora pelas ruas de trânsito caótico. São 7,2 milhões os habitantes de Bogotá e parecem estar todos aqui, apostados em nos complicar a vida. Peões que  se atravessam à nossa frente sem  um aviso ou um olhar, vendedores que empurram  carrinhos em contra-mão,  carros e camiões que passam rápidos, desorganizados e rente, com quem negociamos os escassos milímetros que garantem a nossa sobrevivência.

Arrepia? Ai arrepia sim senhor.

No mercado, de uma organização e asseio que contrastam com o caos das ruas, recuperamos forças e serenidade com um sumo de fruta do tamanho da cidade.
E são horas de regressar, são novamente as ruas da Fadiga  e da Agonia que temos de enfrentar e, desta vez, a subir.


Ah! Disse que as fizemos com a bicicleta pela mão?


domingo, julho 27, 2014

Dar ao pedal



Com centenas de quilómetros de via cicláveis Bogotá é uma cidade que as bicicletas tratam por tu. Esperemos que o choque do 1º dia em altitude e a chuva não estragam a festa.

sábado, julho 26, 2014

Rumo à Colômbia


Colômbia! Vamos a isso.

Encharcado de azul

À noite não posso dormir, estou encharcado de azul.

Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura entra em jorro pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula  - estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida.

 

Nos recantos, nos buracos, nas cavidades e nas grutas fervilha a vida. A gruta dos Enxaréus abre para o mar a grande boca negra. Pedra, abóboda escura, estriada de branco com relevos bordados a preto. Pesa-lhe em cima uma montanha; em baixo na água dum azul carregado, nadam milhares de enxaréus. Naquele refúgio encontram-se às vezes mais peixes que água, tornando-a quase compacta.




Ao largo um pôr-do-sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de ouro fundidos.


in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão

Com o deserto na alma

 
 
Em Faya-Largeau cheira a regresso. Suavemente recuperamos algum do conforto a que a nossa privilegiada vida de europeus nos habituou. Trocamos a noite ao relento pelo chão de uma palhota, as dodots por um balde de água que vamos buscar ao poço.
No mercado encontramos legumes e roupas e animais e louças e mobília e armas. E tantos detectores de metal. E sorrisos e pedidos de fotografia e mais sorrisos.


O vento quente esqueceu a força da chegada e embala-nos docemente como a mão de um amigo que nos encaminha. Amanhã diremos adeus a estas areias, à doçura destes sorrisos.


No regresso à Europa um bom duche limpa a areia do corpo. O deserto, esse, fica sempre na alma.




sexta-feira, julho 25, 2014

quarta-feira, julho 23, 2014

O Corvo é um mundo

As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária, uma vida que não percebo bem! Hoje uma sobre o Corvo lembra uma auréola magnética.


Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram.

Nem uma árvore, só erva verde tosqiada e junco vermelho. O céu enfumado e muito baixo pousa sobre os bordos do vasto caldeirão. As rampas de um verde-claro descem até ao fundo [...] Olho o vasto coliseu. Pedras, calhaus cobertos de líquenes, foram atirados a esmo por todos os lados.


[...] os grandes paredões  riscados de bronze e verde, as águas quietas, a luz fria e a solidão petrificada com o céu pousado sobre as nossas cabeças, transportam-me de repente para outro planeta, para o interior estranho de uma cratera lunar, para um mundo de sonho, habitado pelos gurajaus brancos que passam lá em cima como plumas.


O nevoeiro cor de pérola desce devagar dos bordos, arrasta-se pelas paredes deixando-as molhadas, entranha-se e afoga o Caldeirão, transformando-o numa grande fantasmagoria, dando-lhe personalidade e vida, para outra vez se erguer lentamente em silêncio, deixando à mostra o primeiro lago com ilhotas boiando como monstros petrificados, depois todo o fundo, depois os enormes paredões até lá acima.


in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão

terça-feira, julho 22, 2014

Flores, a floresta adormecida






Esta paisagem verde e molhada é vaga como um sonho entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece.


As ribeiras precipitam-se lá de cima, do planalto, correndo e caindo nos pulos e escavando a terra até encontrarem o leito de lagedo, quase sempre apertadas entre ribanceiras [...] dão à ilha uma verduraconstante e uma voz de oiro.

Montanhas, gargantas profundas se abaixaram gradualmente até ao mar - negras ou iluminadas; colinas em catarata despenham-se - e com a névoa cria-se um panorama de sonho - um panorama de luz sempre a refazer-se.


Da grande muralha selvática que tapa o vale despenham-se, de trezentos, quatrocentos metros de altura, três fitas azuladas de água que caem em baixo em silêncio.



in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão

Chade - álbum 3

O terceiro álbum de fotografias do Chade pode ser visto aqui.


segunda-feira, julho 21, 2014

Ce qui embellit le désert c'est qu'il cache un puits ...*



Haroum ri-se da nossa impaciência, o querer saber se "é já ali?". Não que o caminho seja difícil; o piso irregular de rochas instáveis ondula suavemente com subidas e descidas de poucos metros e as falésias protegem-nos do calor abrasador que haveria de chegar aos 48º.
"Os europeus são sempre assim, apressados. Aproveitem o caminho e não se preocupem com o resto." E nós, calados a contragosto, desejosos de saber se estávamos longe de Archi.

As águas do guelta são o reduto de alguns crocodilos, sobreviventes dos que abundavam na zona há muitos, muitos anos. De tamanho reduzido, têm como base da alimentação excrementos dos camelos, Ocasionalmente um pássaro que se distraia a bebericar, anima-lhes a dieta.

"São poucos e é muito raro que se consigam ver." acrescentou Haroum. "Se estivermos calad..." A voz de Haroum foi abafada por um barulho surdo, constante, que nos acompanhou nas últimas centenas de metros. Em silêncio, num crescendo de tensão, embalados pela estranha música, ziguezagueamos de rocha em rocha até que, depois de uma curva, a respiração suspende-se num sorriso: ei-los, os camelos no guelta de Archi, intérpretes da nossa banda sonora!


Rastejamos até uma saliência no penhasco e sentamo-nos, as pernas a balouçar no vazio, e muitos metros abaixo o espetáculos de dezenas e dezenas de camelos que bebem ou se refrescam, dos homens que lavam roupa, que recolhem água.
Pouco mais de 1 hora demorámos nós a aqui chegar. Eles, os cameleiros e os seus ajudantes-meninos, levaram  quase 3 dias. A vida dos que ficaram no acampamento depende dos que aqui vêm com os dromedários; um atraso, um percalço no caminho, um sono mais longo, um poço seco, pode ser fatal.


Regressam sob o mesmo sol impiedoso que os acompanhou na vinda. Outros 3 dias para transportar a água fétida com que aliviarão a sede da família e dos animais que os esperam. E, no dia seguinte, tudo recomeça.

Aqui o homem não tem a veleidade de dominar a natureza, é ela que o subjuga, que lhe permite a sobrevivência. Ou não.


* Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, julho 18, 2014

Le désert est beau, ajouta-t-il... *


"Não vale, esta tarde já disseste magnífico" exclama P. atrás de mim! Rio-me e procuro um sinónimo. À laia de jogo combinámos não repetir adjetivos, o que é uma tarefa complicada pois o cenário por onde andamos merece-os todos e a todo o instante.
O Ennedi não é o primeiro deserto para nenhum de nós, os nossos olhos já se maravilharam com outras partes do Sahara, mas este pedaço consegue surpreender-nos.
Deixamo-nos deslumbrar pelas rochas de formas bizarras, os arcos trabalhados que se elevam imponentes no céu azul, as pinturas e gravuras que enfeitam  paredes e grutas. E são tantos os arcos e são tantos os desenhos e tão seguidos que mal temos tempo de respirar entre uns e outros. E os adjetivos, repetidos ou não, saltam espontâneos.


Mas não ficamos pelas belezas geológicas. O Ennedi é um deserto cheio de vida: gazelas, cabras, burros, macacos e até o espetáculo comovente da primeira tentativa de dromedário recém-nascido se pôr em pé (video). Os adjetivos, desta vez, não saíram, ficaram colados na garganta.


Estamos perto do Sahel, a fronteira entre as areias do Sahara e as florestas da África tropical, a água está longe mas não demasiado e permite a sobrevivência de algumas famílias Goran, conhecidos pela tenacidade com que resistem à dureza do deserto. Para eles o tempo como o conhecemos não existe, são as necessidades dos animais que condicionam a vida do grupo - procurar a vegetação rasteira que possa servir de pastagem, protegê-los dos predadores, arranjar-lhes água. Que existe, mas nunca a menos de 2 ou 3 dias de distância.
Expressões como "falta de água", "sede", "calor sufocante" têm aqui outro significado. Mais profundo. Muito mais duro.

* Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, julho 02, 2014

Me peina el viento los cabellos*



O vento quente e muito forte marcou a nossa chegada a Faya Largeau. Havia de continuar a soprar apesar das promessas: "Pára sempre por volta das 12h." Meio dia que foi passando a 15h, ... a 17h... até chegarmos ao veredito: "É sempre assim."

E foi o vento, sempre quente e cada vez mais forte, que nos acompanhou na travessia do vasto cordão dunar do Djourab. Não estamos longe da depressão de Bodélé, para onde se dirigem estas areias enfurecidas vindas do Tibesti e do Ennedi. Bodélé é considerado o lugar mais poeirento do mundo, palco de violentas tempestades de areia que, durante mais de 100 dias por ano, transportam diariamente 700 000 toneladas de poeira para lugares tão distantes como Cabo Verde ou mesmo a Amazónia.


Mas regressemos às dunas de Djourab onde encontramos os primeiros tanques, os primeiros obuses abandonados, restos recentes de lutas internas ou da guerra com a Líbia.
Os jipes saltam nas areias moles, enterram-se, exigem o esforço de todos para se libertarem. E o vento, obstinado, cada vez mais forte, a misturar grãos de areia com os do arroz simples que nos serve de jantar.


Enroscamo-nos nos sacos-cama procurando abrigos onde não existem, adormecemos protegidos pela via láctea. Se a areia que rodopia à nossa volta nos permitisse abrir os olhos vê-la-íamos linda, magnífica, a velar por nós.

E na manhã seguinte, sacudida a areia que a noite acumulou nos cabelos, na cara, nas pestanas, vencidas as últimas dunas, entrámos no Ennedi. Sem vento. Quase.


sábado, junho 28, 2014

Chega de saudade*

Será a saudade do deserto razão bastante para justificar uma viagem ao Chade? Claro que sim!
Façamos então ouvidos de mercador à diplomacia portuguesa que desaconselha qualquer deslocação não essencial e partamos para o Ennedi, classificado como "zona instável, sujeita a atos de violência, onde a quantidade de minas constitui um perigo permanente".

 
O governo francês vai mais longe dizendo que só razões imperativas podem justificar uma incursão no Ennedi, região que considera como corredor de passagem para os grupos armados do Mali, rota de tráfico de armas, droga e álcool. E continua, salientando o acesso difícil, a ausência de estruturas rodoviárias, sanitárias e médicas. No caso de uma viagem estritamente necessária é obrigatório o enquadramento por veículos de segurança chadianos que incluam uma equipa médica. Termina com o aviso de que o governo francês não se responsabiliza pela segurança dos gauleses do Chade.

Partimos por nossa conta e risco, enquadrados pela única agência francesa que desafia as autoridades e assegura os vôos de Marselha para Faya Largeau, no norte do Chade.


Sejamos realistas. Sabemos que nos espera um Sahara mais duro que o habitual, um país que abre incipientemente as portas ao turismo tentando aproveitar as que se fecharam na Argélia, na Líbia, Níger, Mali... Mas, precisamente por isso, há da parte do governo do Chade um forte empenho em que nada ensombre a vinda dos grupos que se aventuram pelo "seu" deserto.

Sinais de guerra vimo-los quase todos os dias - os tanques abandonados, os obuses semi-enterrados na areia, as placas a assinalar zonas minadas. (E esta, que pisamos agora, não estará?) A falta de cuidados médicos sentimo-la nas primeiras horas da viagem quando o guia nos pediu desinfetante e pensos para tratar o dedo que a cozinheira cortara. É básico, mas não há.


As refeições foram, dia após dia, uma base de arroz ou cuscus salpicada por um molho onde nadavam algumas sardinhas ou atum de conserva.

Mas o resto, o resto é o deserto. As pastilhas para purificar a água esverdeada, a higiene sumária, o calor asfixiante; e as noites ao relento sob um céu de milhões de estrelas, as paisagens fabulosas que nos esgotavam os adjetivos.


Chega de saudade, Tom Jobim