segunda-feira, agosto 27, 2012

Cerveja... da cabeça aos pés

A cerveja deve consumir-se moderadamente. A cerveja quer-se bem gelada.

O consumo de cerveja na  República Checa é quase assustador, nada menos que 132 litros anuais per capita. Mas, será que este número justifica que eu tenha esvaziado um recipiente com largas dezenas de litros de "cevadinha" em menos de meia hora? E que prazer pode dar cerveja a 34º?

Muito, como se vai ver. 
A cena passa-se em Planá, na Boémia ocidental, no Spa de cerveja Chodovar onde estive imersa num banho de cerveja  espumosa e deliciosamente morna, temperada com água mineral e ervas medicinais. Ao lado da banheira de inox uma caneca de cerveja, esta fresquinha, para bebericar durante o banho. Enquanto isso o líquido dourado  penetra nos poros e actua a nível físio e neurológico.


Vinte minutos passados e a matrona que nos fez as honras do spa retira a tampa da banheira e faz-me seguir, embrulhada num cobertor, para uma caverna escassamente iluminada, para mais outros tantos minutos de repouso, relaxe e, quiçá, meditação.
 

O tempo chega ao fim. Saio descontraída, com a pele mais suave e cheirosa e promessas de cura de celulite e acne, alívio de problemas mentais, diminuição da tensão arterial e melhoria da circulação.

Quem disse que o excesso de cerveja não faz bem à saúde?


sábado, agosto 18, 2012

Badalada suspensa



 Os três romenos entretinham-se em filmes e fotografias e Guiliana deixou que os pensamentos acompanhassem o deslizar da gôndola.
Estava diferente nesse fim de tarde, mergulhada numa inquietação que já não sentia há muito. Desde pequena que o barco era o seu mundo; tentara, e conseguira, ser a primeira gondoleira. E era precisamente a ansiedade desconfortável do primeiro dia, que sentia hoje.

Passaram pela ponte delle Meraviglie e Giuliana olhou por acaso para a fondamenta junto à Cantine del Vino gia Schiavi onde um pequeno grupo saboreava o fim da tarde num copo de prosecco .
Luigi o único homem a quem amara verdadeiramente, estava entre eles, a conversar, vestido de negro, um rectângulo branco a interromper a severidade do hábito.

Os sinos descontrolados pareceram suspender uma meia badalada mas, quando recuperaram o ritmo, a remada tornou-se enérgica e, para alegria dos romenos, Giuliana entoou um sentido “Ó sole mio”.

(Tarefa: na pele de uma veneziana)

quinta-feira, agosto 16, 2012

Uma tarde, nunca é tarde


 Atravessou rapidamente o lobby do hotel para fugir à chuva que começava a cair, entrou no elevador e, mal as portas se fecharam, compôs a figura nos espelhos. Um barulho estranho, um solavanco sobressaltado e a gaiola dourada parou.
Marcel carregou em todos os botões, tentou forçar as portas, sem sucesso. Sabia que era passageiro, que em Veneza as faltas de luz eram frequentes e curtas. O que o aborrecia mesmo era estar ali fechado, entre dourados e damascos que não conseguia ver.
 
 
E ainda menos via o espectáculo que se desenrolava lá fora. Fechou os olhos e imaginou o vento e a chuva a serem impedidos de entrar, como hóspedes indesejados, a esmagarem-se nas janelas do terraço do Danieli, o céu de ardósia rasgado por relâmpagos traçados por mão de criança.
Ah... e o seu lanche.
O chá fumegante  para saborear devagar, muito devagarinho, quase gota a gota, a madalena que mordiscava quase a medo.

Click, as luzes regressaram à vida e o elevador continuou a subida como se nada tivesse acontecido.
Marcel entrou no salão. Na sua mesa habitual estava já o prato com o bolinho minúsculo que lhe encheria a tarde. Só faltava pedir o chá. Chegara a horas de recuperar o tempo perdido.

(Tarefa: na pele de Dickens, Proust, G Sand ou Balzac, que viveram ou estiveram hospedados no Hotel Danieli)

terça-feira, agosto 14, 2012

Milagre veneziano




“Do alto desta torre...”
“Não, Margaretta, não estás na grande pirâmide do Egipto, mas na Campanille de Veneza. A frase não é essa. Deixa-te de tonterias e aproveita o espectáculo.”
Obedeço com uma piscadela de olhos, tiro a máquina fotográfica da mochila, procuro ângulos e cantos. As cadeiras amarelas da piazzetta San Marco com a ilha de San Giorgio ao fundo? Humm, agrada-me.

 
Passo as mãos e a máquina pelas grades e preparo-me para disparar. O alemão gordo que subira connosco no elevador empurra-me e, ... OMG!, a máquina salta-me das mãos e desce vertiginosamente esmagando-se no chão de pedra. Corro para o elevador, impaciente. Há fila. Grande. Vá, anda! Oh meus deus, a máquina e, mais do que ela, as fotos que lá estão.
Aqueles telhados ali, andei debaixo deles ainda ontem, na companhia de gatos e de Corto. A basílica de la Salute,a colá. Perdi os vídeos do concerto de órgão que ouvimos lá.

 
E a piazza san Marco ao lusco-fusco, a ângustia do miúdo a que deixou a bola cair no canal, ali mesmo, olha, foi mesmo naquele sítio.
Vês o ghetto lá ao fundo? Aquele telhado junto à torre inclinada? Foi aí que nos sentámos a escrever sobre a misteriosa Valentina.
Perdi tudo, tudo. Todas as minhas memórias esmagadas lá em baixo.

Saio finalmente do elevador, varro o chão com os olhos desesperados, à procura dos restos da máquina. Nada. Os ombros caem, impotentes, e nem sentem a mão que lhes toca e me estende um cartão de memória que sobressai de um puzzle de peças negras.
“É seu?”
“Obrigada, senhor, obrigada. Como se chama?”
“Eu? Marco, san Marco. Encantado.”


(Tarefa: do alto da Campanille)

strč prst skrz krk

Muitas palavras checas têm sequências de consoantes que nos enrolam a língua. O que não sabia é que se pode escrever toda uma frase sem uma única vogal!
Como "Strč prst skrz krk" que significa "Coloque o seu dedo pelo pescoço".

domingo, agosto 12, 2012

Relógio a dois tempos




O coração de Aaron batia descompassado como um relógio  a que faltasse afinação. Fora por pouco mas conseguira saltar já o barco se afastava do cais.
Se não o apanhasse... Nem queria pensar no que podia acontecer se ainda estivesse em San Marco depois do pôr-do-sol.
A Giudecca desenhava-se no horizonte e só a vista da ilha o descansou. Seguira as regras, cumprira a sua obrigação.


Revoltava-o a imposição de abandonar San Marco com o sol. Os mesmos que durante o dia lhe sorriam ao estender osrelógios para que os reparasse com delicada minúcia, empurravam-no para o outro lado do canal. Como que um relógio a dois tempos. Fechadas as portas da loja fechavam-se também as da tolerância.

 

Nem um pé judeu podia pisar Veneza depois do sol se esconder. Como se alguém tivesse medo que espezinhasse San Marco.
O barco acostou em Zitelle e Aaron saltou para o solo que parecia ainda balouçar. Chegara ao seu refúgo, à sua prisão. E, como todos os dias, engoliu uma lágrima cansada.


(Tarefa: na pele de um judeu da Giudecca)

sexta-feira, agosto 10, 2012

Se non è vero...



A água verde pastosa da fondamenta Cá Balá reflecte o vulto de dois homens apoiados no parapeito da ponte.
“Sabes o que me fez ficar por aqui, há tanto ano?”, perguntou o mais velho, continuando sem esperar a resposta. “O ritmo poético das águas, que parece embalar as palavras fazê-las dançar.”

O outro, rosto anguloso de rugas traçadas como num mapa, limitou-se a acenar lentamente e continuouo a fixar a água que parecia querer atraí-lo ao infinito.

“Não foram os canais nem tão pouco uma mulher, foi esta água que parece respirar, transfigurar-se ao sabor das marés. Acreditas, Corto?”

“Benne,  se non è vero è ben trovato.”, respondeu o marinheiro.


(Tarefa: encontro de Corto com Erza Pound, que viveu muitos anos em Veneza)

quarta-feira, agosto 08, 2012

O poço dos desejos


“Sabe, donna, o que eu gostava era de sair daqui, viajar, conhecer outros lugares.”
Estamos  num tranquilo pátio veneziano. Um poço grande, roupas estendidas ao vento como bandeiras venezianas. E ela, de bata azul, sentada num banco.
“P’rali, por exemplo”, apontando para uma toalha do Brasil. “O meu único irmão foi para lá, em novo. Viveu carnavais e futebóis, lutou pela vida e por lá acabou por morrer, sozinho, esquecido.”


Calou-se por uns momentos
“Patetices de velha”, acrescentou depois de engolir a saudade. “Se ao menos aquele poço fosse um poço dos desejos...”
As bandeiras tibetanas pararam de dançar e o poço branco mudou de côr, vestiu-se de Arlequim.
Foi a sorrir que lhe estendi uma moeda dizendo:
”Quer experimentar?”


(Tarefa: escolher uma fotografia e escrever uma história baseada nela)

segunda-feira, agosto 06, 2012

Grego em Veneza



“O que escondes, Leo? Qual de vós esconde a pista para a clavícula de Salomão, a pista apagada pelas brumas de Veneza?”
O olhar de Corto pousa longamente em cada um dos quatros leões do Arsenal. Olhos nos olhos, apenas, tentando que o olhar, por si só, lhe revelasse o que procurava. Não seria, com certeza, o da direita, deitado junto à água, demasiado fácil de confundir com um carneiro. Nem os seguintes, de ar cómico ou sorridente. Teria de ser o último, o da esquerda, o mais digno, orgulhoso do rei que era.
Com a certeza na alma Corto avançou, olhou-o de frente, à espera da confirmação. Não podia haver dúvida. Era este. Só podia ser este. O grego.

 Continuou parado, a pensar.
Não, não pode ser no peito, nem no lado da ponte, demasiado visíveis para quem chega ao Arsenal. O que procurava teria de estar no flanco menos exposto, o direito.
Só então Corto se aproximou da estátua, colocou-se ao seu lado e, claro, encontrou o que procurava e deixou que a mão calejada pela vida acariciasse uma a uma as letras indecifráveis gravadas na pedra.
Afinal as brumas de Veneza ainda permitiam desvendar mistérios.


(tarefa: Corto e os leões do Arsenal)

domingo, agosto 05, 2012

Ponte sem passagem



Um dois, três, é a minha vez. A tarefa é simples: uma ponte com três arcos, vinte minutos, vinte linhas. Na primeira pessoa, que sou eu.
A mão, carcomida por uma grave artrose cerebral, segura a caneta sem convicção, à espera da luz que teima em não acender.
É uma porta fechada, muda, como a da Casa di Corto, Portas que recusam a abrir-se, que escondem sabe-se lá o quê. Corto, como Alice, já não mora ali. Por onde navegas, marinheiro? Por onde andas, musa inspiradora? Pelos mares do sul?
Uma ponte. preciso de uma ponte para ultrapassar este deserto que não consigo atravessar.
Uma ponte com três arcos?


(tarefa: qualquer coisa que envolva a única ponte de três arcos de Veneza, escrito na 1ª pessoa. Esta tarefa foi deixada como “tpc” e, tal como à tarde, com o exercício da gôndola, estava com dificuldade em escrever)



sábado, agosto 04, 2012

Ciao bello!




Alessandro estende-nos a mão conduzindo-nos para a sua gôndola. Uma, duas remadas e flutuamos no canal. É uma outra Veneza que se revela. Somos agora o alvo das objectivas dos turistas em terra firme. Descobrimos marcas, portas corroídas pela água e pelo tempo, patos de borracha com ânsia de nadar. Há pés que procuram nas águas o alívio dos muitos passos dados, casais que se enlaçam num beijo apertado, crianças que acenam. Jogos de luz e sombra, reflexos que dançam na água ao ritmo do assobio de Alessandro.

Sem darmos por isso a gôndola encosta, pede descanso, e a mão de Alessandro estende-se para nos ajudar a pôr o pé em terra.
Ciao bello!


 
(tarefa: o passeio de gôndola que acabáramos de fazer)

sexta-feira, agosto 03, 2012

O poço do ghetto



Passou pelo primeiro poço sem o ver. Ao segundo, mais distante, deitou um olhar desinteressado e foi ao chegar ao terceiro que abrandou o passo e parou. Com um ar aparentemente descontraído  olhou-o de todos os lados. A mão passou discreta sobre a tampa de metal, como se a acariciasse de uma forma quase sensual, os dedos nervosos percorreram o rebordo até pararem junto a um pedaço de papel que, mais do que se ver, se sentia.
Retirou-o à pressa e guardou-o, olhando à sua volta para se assegurar que ninguém a tinha visto.
Respirou fundo e avançou, agora mais confiante. No rosto que se escondia sob uma maquilhagem carregada pintava-se agora um sorriso.


Atravessou o pátio, cruzando os arcos, entrou na sala de pedra, pequena e escura, e sentou-se. Só aí Valentina pegou no papel, desdobrou-o com cuidado. Um sorriso iluminou os olhos de um verde que contrastava com o escarlate provocante dos lábios.  Acomodou-se na cadeira e esperou.

Já perto do fim do dia, ao pátio deserto chegou uma sombra longa. Avançou sem hesitações, passou pelo  primeiro poço, pelo segundo e, como Valentina, tacteou o rebordo em busca do que já não estava lá.
Sorriu, endireitou as costas, passou pelos arcos, tirou o chapéu de marinheiro e entrou na sala pequena e escura.


 (tarefa: introduzir Corto em Veneza e incluir a senhora de uma galeria de arte do pátio)