terça-feira, junho 22, 2010

Fronteira Bolívia-Argentina

São formigas humanas, não andam, correm, não passam pelo controle de alfândega mas ninguém as impede, ninguém lhe liga, ninguém as vê. Não existem. Transportam bens entre os dois países, a Argentina e a Bolívia. Cargas enormes, volumosas pesadíssimas, de arroz, milho, cimento, móveis... O esforço vê-se-lhe no rosto, nos olhos vazios, cansados.

Não param, andam depressa, conseguem mesmo correr ajoujados pelos 50 ou 70 quilos que levam às costas. Aceleram ainda mais no regresso, para conseguir apanhar nova carga que trarão, derreados, mas sempre sem parar, sem descanso.

São homens e mulheres e competem indiferenciadamente pelo transporte do maior número de quilos, para levar para casa uns magros bolivianos que permitam colocar mais qualquer coisa na mesa dos muitos filhos.

A 2 ou 3 metros os fiscais da alfândega afadigam-se a vistoriar os sacos de quem muda de país. E ali ao lado o frenesim continua, sem cessar, num formigueiro humano, desumano.
Com um nó na garganta deixamos Villazon e entramos em Quiaca, saímos da Bolívia e regressamos à Argentina, fechando o ciclo e o relato da viagem.

(Um vídeo da fronteira aqui )




segunda-feira, junho 21, 2010

LeRoy e Harry, aliás, Butch and the Kid


Começaram ainda garotos a roubar cavalos. Por este crime Harry Longabaugh cumpriu pena na prisão de Sundance. Quando de lá saiu já era Sundance Kid. Também LeRoy Parker mudou o nome e inspirando-se no emprego que teve num talho, auto-denominou-se Butch Cassidy.

Pistoleiros, foras-da-lei, ganhavam a vida a assaltar bancos e comboios. Tão grande foi o sucesso que as recompensas pagas pela sua captura se tornaram demasiado tentadoras e, para fugir aos caçadores de prémios, foram para a Patagónia onde compraram um rancho e viveram algum tempo como honestos fazendeiros. Descobertos, fogem para o Chile e para a Bolívia, arredondando as contas com assaltos pelo caminho.

Presumivelmente estabeleceram-se em Tupiza, que era na altura um importante centro mineiro de prata, e conseguiram ganhar a confiança dos compatriotas que enriqueciam nas minas. Tendo sabido do dia em que uma caravana de mulas ia sair da cidade com os salários dos empregados das minas, B&K preparam uma emboscada no desfiladeiro de Huaca Huañusca.

Azar ... o transporte da generosa quantia fora adiado por uma semana e os dois bandidos apenas conseguiram uma fracção do esperado. E como um azar nunca vem só e o sotaque americano denunciou-os. Em fuga param em San Vicente onde pedem alojamento. Estranhando a pressa e as muitas perguntas sobre como chegar à fronteira, o hospedeiro avisa as autoridades, que cercam a casa.

Depois de intenso tiroteio os soldados conseguem entrar e encontram os cadáveres dos dois, que enterram no cemitério local a 3 de Novembro de 1908.

Nunca foi provado que os dois forasteiros eram efectivamente Butch e Kid. Há poucas dezenas de anos as autoridades bolivianas tentaram encontrar quem com eles tivesse convivido. Mas só um ancião dizia lembrar-se dos estrangeiros e conduziu a comitiva ao túmulo de um mineiro alemão falecido num acidente...


No fotografia que acompanha este post é o retrato do Wild Bunch, o bando de Sundance Kid (sentado, à esquerda) e Butch Cassidy (sentado, à direita).


domingo, junho 20, 2010

Tupiza, vila-poeira

Tupiza tem um ar de far west. Ruas desertas, varridas pelo vento que levanta poeira e a deposita por todo o lado. Não seria estranho ver as portas de um saloon abrirem-se para deixar passar um batoteiro atirado pelos companheiros de jogo. Mas tudo está tranquilo e até o sino de uma igreja toca as horas com lentidão.

Afastamo-nos da cidade a pé e entramos no canyon, verdadeiro cenário de filmes de cowboys. Percorremos o leito de um rio por ora seco, subimos colinas, saltamos pequenos desfiladeiros, trepamos escarpas vermelhas para um merecido panorama de Tupiza anichada no vale banhado pelo sol de fim de tarde.


Como cinco desperados descemos a encosta, passamos pelo cemitério e o seu mausoléu dos comerciantes de folha de coca, entramos nas ruas que continuam desertas e poeirentas.

E os dois vultos que se aproximam serão os fantasmas de LeRoy e Harry?
(continua no próximo post)



sábado, junho 19, 2010

Chapéus há muitos

Podia ser um mercado como todos os outros da América do Sul, com a venda de textéis coloridos, das folhas de coca, dos fetos de lama.

O que o torna diferente dos outros não é o que por lá se vende mas a vestimenta de quem por lá anda. Domingo de mercado é dia de festa e os camponeses vestem-se a rigor, com o poncho tradicional, as alpergatas e a montera, um chapéu-capacete de couro que remonta à época dos guerreiros e conquistadores espanhóis.


E as ruas enchem-se de turistas que não resistem às camisolas de lã de alpaca e principalmente de quem vem comprar o essencial para o dia-a-dia, seja ele o óleo de cobra, bico de tucano, as batatas de mil formas ou a chinelas, tijolos de sal, ou tratar de umas fotocópias que o consultório do dentista também faz. A música das charangas animam o já de si animado.

sexta-feira, junho 18, 2010

Vale un potosí

Abandonamos o planalto e descemos para Potosí. As montanhas coloridas continuam presentes mas é quase que com surpresa apercebermos da presença verde das árvores que já não víamos há semanas e que o aproximar da primavera faz despontar timidamente. As povoações são mais frequentes, cruzamo-nos com pastores de lamas e cabras, com miúdos de sacola às costas que regressam da escola. Um outro mundo, duro, também, mas incomparavelmente menos rigoroso que o do altiplano.

E chegamos a Potosí, cidade simpática, colonial, caótica.

Corria o ano de 1544 quando o pastor Diego Hualpa saiu à procura de dois lamas perdidos. A noite caiu sem que tivesse encontrado os animais, mas o pastor não quis desistir da busca e abrigou-se no sopé dum monte para prosseguir a procura no dia seguinte. Para se proteger do frio da noite acendeu uma fogueira e o calor foi tal que a terra à sua volta derreteu e escorreu num líquido viscoso e brilhante: prata.

Os colonizadores espanhóis não tardaram a saber da descoberta, instalaram-se na região criando a cidade de Potosí e iniciando a exploração da prata escondida nas entranhas daquele a que chamaram Cerro Rico. Tão rico que se diz que a prata nele existente daria para construir uma ponte até Espanha e ainda sobrava mineral para ser explorado.
Ainda hoje se utiliza a expressão "vale un potosí" para indicar qualquer actividade muito lucrativa ou um negócio excepcional e no brasão da cidade está inscrito:

“Yo soy la rica Potosí
El tesoro del mundo
La envidia de los reyes”

Uma interessante visita à Casa Real de la Moneda dá-nos a conhecer este passado brilhante.
O filão de prata de Cerro Rico está praticamente esgotado e apenas algumas cooperativas de mineiros a exploram para dela extraír algum magro rendimento que é arredondado pelas visitas dos turistas, aventura já partilhada no post Dinamite Kids.

quinta-feira, junho 17, 2010

O comboio apitou 3 vezes...

Tivesse eu 11 anos e também andava como eles, a pular de máquina em máquina, a brincar aos irmãos Dalton e a assaltar comboios com a miudagem da família.
A isso convidam as carcaças das velhas locomotivas da era do vapor que se amontoam e enferrujam nos arrabaldes de Uyuni, num sítio a que os turistas chamam Museu dos Caminhos de Ferro e os locais, mais prosaicos e sem perceber o interesse dos primeiros, conhecem como o Cemitério dos Comboios.

Mas se a idade já não permite brincadeiras como as dos rapazitos que encontramos pude, pelo menos, satisfazer um desejo de há muito: deitar-me na linha qual donzela amarrada aos carris a olhar desesperada para o comboio fumegante que se aproximava e a ser salva, no último instante, pelo charmoso cow-boy.

Bom... trem a aproximar-se a alta velocidade não havia e, talvez por isso, só por isso, nenhum herói apareceu para me resgatar.
Algum fétiche que deve morar no fundo do meu inconsciente pois, como as fotos que se seguem demonstram, os carris devem ter para mim um "je ne sais quoi".


E como se não bastasse foi num cenário decorado com motivos de gares e comboios que terminámos o dia, à volta de um bife de lama com roquefort e uma refrescante caipirinha.
Terá sido por isso que acabámos a noite a dançar nas ruas com um grupo local que ensaiava para a festa?


(Post dedicado à "ferroviária" MLee)

quarta-feira, junho 16, 2010

O sal da vida

A extracção de sal em Uyuni não é, felizmente, intensiva e, se bem que algum siga para as fábricas, uma parte importante é utilizada para consumo caseiro.

Em Colchani alguns campesinos, de óculos, luvas e máscara para se protegerem dos efeitos da reverberação, escavam o salar e amontoam o sal em pequenos cones, prontos para seguirem em caravanas de lamas para povoações mais importantes, onde são trocados por bens que não existem nestas paragens, como milho, folhas de coca, batatas ou mesmo madeira.

Os hoteis que havia em pleno do salar, inteiramente construídos com blocos de sal, foram desactivados por razões ambientais, e são hoje uma curiosidade onde a venda de recordações para turistas está lado a lado com pedaços de carne de lama que secam ao sol e cartazes que pedem aos passantes para não urinar nas paredes de sal.



terça-feira, junho 15, 2010

A lenda de Tunupa

Numa espécie de promontório que avança pela imensidão branca do Salar de Uyuni fica o vulcão Tunupa, alto de 5400 metros. Diz uma lenda que foi nas suas encostas que o imperador inca Atahualpa cortou o seio de uma jovem, vá-se lá saber porquê!, e o leite derramado formou o salar.

Prefiro uma outra, que fala de Tunu-apa, uma bela jovem casada com um nobre que a enganava. Tunu-apa pediu ajuda à deusa Pachamama que, depois de castigar os prevaricadores, decidiu imortalizar a jovem e transformou-a no mais belo dos vulcões.
Desolada com a sua nova condição e por não se poder mexer, Tunu-apa chorou, chorou, chorou. E foram as lágrimas que, misturadas com o leite que jorrava dos seus seios, deram origem ao salar.

Seja como fôr Tunupa é um vulcão magnífico que em 2004 subi. Sem a inclinação e o piso solto do Licancabur e já bem adaptada à altitude, foi relativamente fácil chegar aos 4870 metros de uma plataforma natural que serve de mirador e onde todo o esforço foi recompensado pelo prazer do silêncio e da imponente vista dos milhares de quilómetros quadrados de branco que se estendiam aos nossos pés.

segunda-feira, junho 14, 2010

O Salar de Uyuni

À minha volta uma imensidão vazia de um branco tão branco que quase cega, apesar dos óculos de sol. Não há nada a quebrar a brancura, além de uns longínquos vulcões. Sinto-me no mar, sem pontos de referência. Talvez por isso os primeiros passos são hesitantes, como se o tapete branco escondesse um verdadeiro lago que a todo o instante pudesse ceder sob os meus passos.
Estou no meio do Salar de Uyuni, um puzzle de milhões de peças hexagonais, brancas de sal, que se entende por 12 000 km2, restos de um enorme lago que aqui existiu há mais de 30 000 anos.

A brancura é apenas quebrada por algumas pequenas "ilhas" onde crescem cactos milenares e acrescentam uma nota insólita à paisagem já de si surreal.

No verão, quando cai alguma, pouca, chuva, o salar transforma-se num gigantesco espelho e, diz quem o viu assim, nessa altura é quase impossível acreditar que se pisa solo firme e não que se voa por entre as nuvens do céu que se reflectem em terra.


domingo, junho 13, 2010

Ruta de las Joyas

Chama-se Ruta de las Joyas, nome justamente merecido pelas paisagens preciosas que atravessamos, uma sucessão de vulcões coroados de neve que se reflectem nas inúmeras lagoas povoadas de flamingos.

Mas o péssimo estado da pista provocava um chocalhar de tal modo violento que os locais a conheciam por Ruta Tum-Tum, nome de uma dança bamboleante da província das Yungas.
A descoberta de importantes jazidas de cobre e lítio transformaram região num estaleiro descomunal. Dezenas e dezenas de máquinas pesadas rasgam o planalto para transformar a antiga pista numa estrada de terra para que daqui a algum tempo a exploração dos minérios possa começar.

As jóias, essas, felizmente continuam lá e são lagoas como a Honda, a Charcota, a Hedionda, ..., e vulcões como o Tomassamil e o sempre bem activo Ollague.

sábado, junho 12, 2010

Passagem de modelos

Uma mão cheia de beldades desfila na passerelle do Sud Lipez, um cenário feito de montanhas que a Pachamama, a deusa mãe-natureza, pintou de várias cores.

A top model Árbol de Piedra, habituada há muito a ser alvo de todas as atenções, permanece indiferente aos disparos das máquinas fotográficas dos viajantes que se encantam com as suas formas trabalhadas pelo grande escultor que é o vento.

Não havia na assistência as viscachas que vimos em 2004 mas nem por isso o desfile acabou.
As Rocas do Deserto de Dali, de ar distante e surreal, parecem ter sido colocadas na areia do cenário pelo pintor visionário a que foram buscar o nome.

Sol de Mañana, a terceira model do dia, acusa a idade, é uma pálida imagem do que já foi.
Há cinco anos apresentou-se em todo o seu esplendor, presenteou-nos com um desfile feérico de lamas coloridas que borbulhavam sem cessar, fumarolas sulfurosas que nos envolviam e davam a sensação de caminharmos num pântano de Avalon, de onde a todo o instante podia sair a figura misteriosa de um druida.

Hoje é uma sombra do que foi mas debaixo das marcas da idade descobrem-se ainda os traços da beleza marcante de outrora.
E no final do desfile o que poderia ser melhor que um retemperador jacuzzi ao ar livre, enquadrado numa paisagem grandiosa?


(As fotos 3 e 4 foram tiradas em 2004)

sexta-feira, junho 11, 2010

Laguna Colorada

Depois da Verde, a Colorada, de um rosa intenso onde bandos de flamingos, também eles rosa, se alimentam. À volta, rebanhos de lamas esforçam-se por tirar algum sustenso dos escassos tufos de erva que encontram. Mais perfeito era difícil!

Pouco profunda, a lagoa deve a cor às algas e plancton que proliferam nas águas ricas em minerais. Os microfósseis dos sedimentos utiliza-os a indústria em produtos tão díspares como pasta de dentes, filtros para gasolina de avião, cerveja, tintas e plásticos.

O sol começa a baixar trazendo com ele o frio e os lamas iniciam uma pequena migração procurando abrigo para a noite no outro lado da enconsta sobranceira à lagoa. É tempo de , também nós, recolhermos ao relativo conforto do albergue.