
Uma pausa necessária...
São formigas humanas, não andam, correm, não passam pelo controle de alfândega mas ninguém as impede, ninguém lhe liga, ninguém as vê. Não existem. Transportam bens entre os dois países, a Argentina e a Bolívia. Cargas enormes, volumosas pesadíssimas, de arroz, milho, cimento, móveis... O esforço vê-se-lhe no rosto, nos olhos vazios, cansados.
Não param, andam depressa, conseguem mesmo correr ajoujados pelos 50 ou 70 quilos que levam às costas. Aceleram ainda mais no regresso, para conseguir apanhar nova carga que trarão, derreados, mas sempre sem parar, sem descanso.
A 2 ou 3 metros os fiscais da alfândega afadigam-se a vistoriar os sacos de quem muda de país. E ali ao lado o frenesim continua, sem cessar, num formigueiro humano, desumano.
Tupiza tem um ar de far west. Ruas desertas, varridas pelo vento que levanta poeira e a deposita por todo o lado. Não seria estranho ver as portas de um saloon abrirem-se para deixar passar um batoteiro atirado pelos companheiros de jogo. Mas tudo está tranquilo e até o sino de uma igreja toca as horas com lentidão.
Afastamo-nos da cidade a pé e entramos no canyon, verdadeiro cenário de filmes de cowboys. Percorremos o leito de um rio por ora seco, subimos colinas, saltamos pequenos desfiladeiros, trepamos escarpas vermelhas para um merecido panorama de Tupiza anichada no vale banhado pelo sol de fim de tarde.
Como cinco desperados descemos a encosta, passamos pelo cemitério e o seu mausoléu dos comerciantes de folha de coca, entramos nas ruas que continuam desertas e poeirentas.

Podia ser um mercado como todos os outros da América do Sul, com a venda de textéis coloridos, das folhas de coca, dos fetos de lama.
O que o torna diferente dos outros não é o que por lá se vende mas a vestimenta de quem por lá anda. Domingo de mercado é dia de festa e os camponeses vestem-se a rigor, com o poncho tradicional, as alpergatas e a montera, um chapéu-capacete de couro que remonta à época dos guerreiros e conquistadores espanhóis.
E as ruas enchem-se de turistas que não resistem às camisolas de lã de alpaca e principalmente de quem vem comprar o essencial para o dia-a-dia, seja ele o óleo de cobra, bico de tucano, as batatas de mil formas ou a chinelas, tijolos de sal, ou tratar de umas fotocópias que o consultório do dentista também faz. A música das charangas animam o já de si animado.
Abandonamos o planalto e descemos para Potosí. As montanhas coloridas continuam presentes mas é quase que com surpresa apercebermos da presença verde das árvores que já não víamos há semanas e que o aproximar da primavera faz despontar timidamente. As povoações são mais frequentes, cruzamo-nos com pastores de lamas e cabras, com miúdos de sacola às costas que regressam da escola. Um outro mundo, duro, também, mas incomparavelmente menos rigoroso que o do altiplano.
E chegamos a Potosí, cidade simpática, colonial, caótica.
Os colonizadores espanhóis não tardaram a saber da descoberta, instalaram-se na região criando a cidade de Potosí e iniciando a exploração da prata escondida nas entranhas daquele a que chamaram Cerro Rico. Tão rico que se diz que a prata nele existente daria para construir uma ponte até Espanha e ainda sobrava mineral para ser explorado.
Uma interessante visita à Casa Real de la Moneda dá-nos a conhecer este passado brilhante.
Tivesse eu 11 anos e também andava como eles, a pular de máquina em máquina, a brincar aos irmãos Dalton e a assaltar comboios com a miudagem da família.
Mas se a idade já não permite brincadeiras como as dos rapazitos que encontramos pude, pelo menos, satisfazer um desejo de há muito: deitar-me na linha qual donzela amarrada aos carris a olhar desesperada para o comboio fumegante que se aproximava e a ser salva, no último instante, pelo charmoso cow-boy.
Bom... trem a aproximar-se a alta velocidade não havia e, talvez por isso, só por isso, nenhum herói apareceu para me resgatar.
E como se não bastasse foi num cenário decorado com motivos de gares e comboios que terminámos o dia, à volta de um bife de lama com roquefort e uma refrescante caipirinha.
A extracção de sal em Uyuni não é, felizmente, intensiva e, se bem que algum siga para as fábricas, uma parte importante é utilizada para consumo caseiro.
Em Colchani alguns campesinos, de óculos, luvas e máscara para se protegerem dos efeitos da reverberação, escavam o salar e amontoam o sal em pequenos cones, prontos para seguirem em caravanas de lamas para povoações mais importantes, onde são trocados por bens que não existem nestas paragens, como milho, folhas de coca, batatas ou mesmo madeira.
Os hoteis que havia em pleno do salar, inteiramente construídos com blocos de sal, foram desactivados por razões ambientais, e são hoje uma curiosidade onde a venda de recordações para turistas está lado a lado com pedaços de carne de lama que secam ao sol e cartazes que pedem aos passantes para não urinar nas paredes de sal.
Numa espécie de promontório que avança pela imensidão branca do Salar de Uyuni fica o vulcão Tunupa, alto de 5400 metros. Diz uma lenda que foi nas suas encostas que o imperador inca Atahualpa cortou o seio de uma jovem, vá-se lá saber porquê!, e o leite derramado formou o salar.
Prefiro uma outra, que fala de Tunu-apa, uma bela jovem casada com um nobre que a enganava. Tunu-apa pediu ajuda à deusa Pachamama que, depois de castigar os prevaricadores, decidiu imortalizar a jovem e transformou-a no mais belo dos vulcões.
Seja como fôr Tunupa é um vulcão magnífico que em 2004 subi. Sem a inclinação e o piso solto do Licancabur e já bem adaptada à altitude, foi relativamente fácil chegar aos 4870 metros de uma plataforma natural que serve de mirador e onde todo o esforço foi recompensado pelo prazer do silêncio e da imponente vista dos milhares de quilómetros quadrados de branco que se estendiam aos nossos pés.
À minha volta uma imensidão vazia de um branco tão branco que quase cega, apesar dos óculos de sol. Não há nada a quebrar a brancura, além de uns longínquos vulcões. Sinto-me no mar, sem pontos de referência. Talvez por isso os primeiros passos são hesitantes, como se o tapete branco escondesse um verdadeiro lago que a todo o instante pudesse ceder sob os meus passos.
A brancura é apenas quebrada por algumas pequenas "ilhas" onde crescem cactos milenares e acrescentam uma nota insólita à paisagem já de si surreal.
Chama-se Ruta de las Joyas, nome justamente merecido pelas paisagens preciosas que atravessamos, uma sucessão de vulcões coroados de neve que se reflectem nas inúmeras lagoas povoadas de flamingos.
Mas o péssimo estado da pista provocava um chocalhar de tal modo violento que os locais a conheciam por Ruta Tum-Tum, nome de uma dança bamboleante da província das Yungas.
As jóias, essas, felizmente continuam lá e são lagoas como a Honda, a Charcota, a Hedionda, ..., e vulcões como o Tomassamil e o sempre bem activo Ollague.
Uma mão cheia de beldades desfila na passerelle do Sud Lipez, um cenário feito de montanhas que a Pachamama, a deusa mãe-natureza, pintou de várias cores.
Não havia na assistência as viscachas que vimos em 2004 mas nem por isso o desfile acabou.
Sol de Mañana, a terceira model do dia, acusa a idade, é uma pálida imagem do que já foi.
Hoje é uma sombra do que foi mas debaixo das marcas da idade descobrem-se ainda os traços da beleza marcante de outrora.
Depois da Verde, a Colorada, de um rosa intenso onde bandos de flamingos, também eles rosa, se alimentam. À volta, rebanhos de lamas esforçam-se por tirar algum sustenso dos escassos tufos de erva que encontram. Mais perfeito era difícil!
Pouco profunda, a lagoa deve a cor às algas e plancton que proliferam nas águas ricas em minerais. Os microfósseis dos sedimentos utiliza-os a indústria em produtos tão díspares como pasta de dentes, filtros para gasolina de avião, cerveja, tintas e plásticos.
O sol começa a baixar trazendo com ele o frio e os lamas iniciam uma pequena migração procurando abrigo para a noite no outro lado da enconsta sobranceira à lagoa. É tempo de , também nós, recolhermos ao relativo conforto do albergue.