domingo, julho 27, 2014
Dar ao pedal
Com centenas de quilómetros de via cicláveis Bogotá é uma cidade que as bicicletas tratam por tu. Esperemos que o choque do 1º dia em altitude e a chuva não estragam a festa.
sábado, julho 26, 2014
Encharcado de azul
Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura entra em jorro pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula - estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida.
Nos recantos, nos buracos, nas cavidades e nas grutas fervilha a vida. A gruta dos Enxaréus abre para o mar a grande boca negra. Pedra, abóboda escura, estriada de branco com relevos bordados a preto. Pesa-lhe em cima uma montanha; em baixo na água dum azul carregado, nadam milhares de enxaréus. Naquele refúgio encontram-se às vezes mais peixes que água, tornando-a quase compacta.
Ao largo um pôr-do-sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de ouro fundidos.
in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão
Com o deserto na alma
Em Faya-Largeau cheira a regresso. Suavemente recuperamos algum do conforto a que a nossa privilegiada vida de europeus nos habituou. Trocamos a noite ao relento pelo chão de uma palhota, as dodots por um balde de água que vamos buscar ao poço.
No mercado encontramos legumes e roupas e animais e louças e mobília e armas. E tantos detectores de metal. E sorrisos e pedidos de fotografia e mais sorrisos.
O vento quente esqueceu a força da chegada e embala-nos docemente como a mão de um amigo que nos encaminha. Amanhã diremos adeus a estas areias, à doçura destes sorrisos.
No regresso à Europa um bom duche limpa a areia do corpo. O deserto, esse, fica sempre na alma.
sexta-feira, julho 25, 2014
Chade - álbum 4
O quarto e último álbum de fotografias do Chade, bem como os três anteriores, podem ser vistos aqui.
quarta-feira, julho 23, 2014
O Corvo é um mundo
As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária, uma vida que não percebo bem! Hoje uma sobre o Corvo lembra uma auréola magnética.
Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram.
Nem uma árvore, só erva verde tosqiada e junco vermelho. O céu enfumado e muito baixo pousa sobre os bordos do vasto caldeirão. As rampas de um verde-claro descem até ao fundo [...] Olho o vasto coliseu. Pedras, calhaus cobertos de líquenes, foram atirados a esmo por todos os lados.
[...] os grandes paredões riscados de bronze e verde, as águas quietas, a luz fria e a solidão petrificada com o céu pousado sobre as nossas cabeças, transportam-me de repente para outro planeta, para o interior estranho de uma cratera lunar, para um mundo de sonho, habitado pelos gurajaus brancos que passam lá em cima como plumas.
O nevoeiro cor de pérola desce devagar dos bordos, arrasta-se pelas paredes deixando-as molhadas, entranha-se e afoga o Caldeirão, transformando-o numa grande fantasmagoria, dando-lhe personalidade e vida, para outra vez se erguer lentamente em silêncio, deixando à mostra o primeiro lago com ilhotas boiando como monstros petrificados, depois todo o fundo, depois os enormes paredões até lá acima.
in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão
terça-feira, julho 22, 2014
Flores, a floresta adormecida
As ribeiras precipitam-se lá de cima, do planalto, correndo e caindo nos pulos e escavando a terra até encontrarem o leito de lagedo, quase sempre apertadas entre ribanceiras [...] dão à ilha uma verduraconstante e uma voz de oiro.
Montanhas, gargantas profundas se abaixaram gradualmente até ao mar - negras ou iluminadas; colinas em catarata despenham-se - e com a névoa cria-se um panorama de sonho - um panorama de luz sempre a refazer-se.
Da grande muralha selvática que tapa o vale despenham-se, de trezentos, quatrocentos metros de altura, três fitas azuladas de água que caem em baixo em silêncio.
in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão
segunda-feira, julho 21, 2014
Ce qui embellit le désert c'est qu'il cache un puits ...*
Haroum ri-se da nossa impaciência, o querer saber se "é já ali?". Não que o caminho seja difícil; o piso irregular de rochas instáveis ondula suavemente com subidas e descidas de poucos metros e as falésias protegem-nos do calor abrasador que haveria de chegar aos 48º.
"Os europeus são sempre assim, apressados. Aproveitem o caminho e não se preocupem com o resto." E nós, calados a contragosto, desejosos de saber se estávamos longe de Archi.
As águas do guelta são o reduto de alguns crocodilos, sobreviventes dos que abundavam na zona há muitos, muitos anos. De tamanho reduzido, têm como base da alimentação excrementos dos camelos, Ocasionalmente um pássaro que se distraia a bebericar, anima-lhes a dieta.
"São poucos e é muito raro que se consigam ver." acrescentou Haroum. "Se estivermos calad..." A voz de Haroum foi abafada por um barulho surdo, constante, que nos acompanhou nas últimas centenas de metros. Em silêncio, num crescendo de tensão, embalados pela estranha música, ziguezagueamos de rocha em rocha até que, depois de uma curva, a respiração suspende-se num sorriso: ei-los, os camelos no guelta de Archi, intérpretes da nossa banda sonora!
Rastejamos até uma saliência no penhasco e sentamo-nos, as pernas a balouçar no vazio, e muitos metros abaixo o espetáculos de dezenas e dezenas de camelos que bebem ou se refrescam, dos homens que lavam roupa, que recolhem água.
Pouco mais de 1 hora demorámos nós a aqui chegar. Eles, os cameleiros e os seus ajudantes-meninos, levaram quase 3 dias. A vida dos que ficaram no acampamento depende dos que aqui vêm com os dromedários; um atraso, um percalço no caminho, um sono mais longo, um poço seco, pode ser fatal.
Regressam sob o mesmo sol impiedoso que os acompanhou na vinda. Outros 3 dias para transportar a água fétida com que aliviarão a sede da família e dos animais que os esperam. E, no dia seguinte, tudo recomeça.
Aqui o homem não tem a veleidade de dominar a natureza, é ela que o subjuga, que lhe permite a sobrevivência. Ou não.
* Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry
sábado, julho 19, 2014
sexta-feira, julho 18, 2014
Le désert est beau, ajouta-t-il... *
"Não vale, esta tarde já disseste magnífico" exclama P. atrás de mim! Rio-me e procuro um sinónimo. À laia de jogo combinámos não repetir adjetivos, o que é uma tarefa complicada pois o cenário por onde andamos merece-os todos e a todo o instante.
O Ennedi não é o primeiro deserto para nenhum de nós, os nossos olhos já se maravilharam com outras partes do Sahara, mas este pedaço consegue surpreender-nos.
Deixamo-nos deslumbrar pelas rochas de formas bizarras, os arcos trabalhados que se elevam imponentes no céu azul, as pinturas e gravuras que enfeitam paredes e grutas. E são tantos os arcos e são tantos os desenhos e tão seguidos que mal temos tempo de respirar entre uns e outros. E os adjetivos, repetidos ou não, saltam espontâneos.
Mas não ficamos pelas belezas geológicas. O Ennedi é um deserto cheio de vida: gazelas, cabras, burros, macacos e até o espetáculo comovente da primeira tentativa de dromedário recém-nascido se pôr em pé (video). Os adjetivos, desta vez, não saíram, ficaram colados na garganta.
Estamos perto do Sahel, a fronteira entre as areias do Sahara e as florestas da África tropical, a água está longe mas não demasiado e permite a sobrevivência de algumas famílias Goran, conhecidos pela tenacidade com que resistem à dureza do deserto. Para eles o tempo como o conhecemos não existe, são as necessidades dos animais que condicionam a vida do grupo - procurar a vegetação rasteira que possa servir de pastagem, protegê-los dos predadores, arranjar-lhes água. Que existe, mas nunca a menos de 2 ou 3 dias de distância.
sábado, julho 12, 2014
quarta-feira, julho 02, 2014
Me peina el viento los cabellos*
O vento quente e muito forte marcou a nossa chegada a Faya Largeau. Havia de continuar a soprar apesar das promessas: "Pára sempre por volta das 12h." Meio dia que foi passando a 15h, ... a 17h... até chegarmos ao veredito: "É sempre assim."
E foi o vento, sempre quente e cada vez mais forte, que nos acompanhou na travessia do vasto cordão dunar do Djourab. Não estamos longe da depressão de Bodélé, para onde se dirigem estas areias enfurecidas vindas do Tibesti e do Ennedi. Bodélé é considerado o lugar mais poeirento do mundo, palco de violentas tempestades de areia que, durante mais de 100 dias por ano, transportam diariamente 700 000 toneladas de poeira para lugares tão distantes como Cabo Verde ou mesmo a Amazónia.
Mas regressemos às dunas de Djourab onde encontramos os primeiros tanques, os primeiros obuses abandonados, restos recentes de lutas internas ou da guerra com a Líbia.
Os jipes saltam nas areias moles, enterram-se, exigem o esforço de todos para se libertarem. E o vento, obstinado, cada vez mais forte, a misturar grãos de areia com os do arroz simples que nos serve de jantar.
Enroscamo-nos nos sacos-cama procurando abrigos onde não existem, adormecemos protegidos pela via láctea. Se a areia que rodopia à nossa volta nos permitisse abrir os olhos vê-la-íamos linda, magnífica, a velar por nós.
E na manhã seguinte, sacudida a areia que a noite acumulou nos cabelos, na cara, nas pestanas, vencidas as últimas dunas, entrámos no Ennedi. Sem vento. Quase.
Me peina el viento los cabellos, Pablo Neruda
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