domingo, setembro 30, 2007

Sobre o Manambolo

Não sendo inédita, a partida de uma avioneta do aeródromo de Tsiroamandidy é suficientemente rara para atrair uma parte significativa da população local que se aglomera junto à vedação de acesso à pista. Grupos de crianças sorridentes, senhoras bem protegidas do sol por vistosos chapéus - sim, que o malgaxe, homem ou mulher, é coquette - homens de catana na mão, marca do trabalho no campo que interromperam, assistem, curiosos, aos preparativos para a nossa partida.

Passadas as montanhas o Manambolo, o rio onde iremos passar os próximos dias, serpenteia por entre bancos de areia deixando antever uma navegação difícil.


E, se à partida tivemos assistência, o que dizer da verdadeira comissão de boas vindas da chegada? Assim que as hélices pararam, rapazes e crianças precipitaram-se para o avião disputando o privilégio de transportar os nossos sacos. Os rapazes para mostrarem a sua força e conseguirem, assim, ser escolhidos para integrarem a nossa equipa , as crianças pela emoção de tocarem os apetrechos dos vazahas.


sábado, setembro 22, 2007

Famadihana - revirar os mortos


A ligação entre as pincipais cidades de Madagáscar, seja ela por estradas ou por pistas, é garantida pelos "taxy-brosy"- carrinhas, camionetas ou mini-autocarros - em condições mais ou menos precárias. Muitos dos que cruzámos ostentavam uma placa de "transporte especial" porque, no tejadilho, misturado com cestos, sacos de arroz, galinhas, colchões, móveis e bicicletas, ia um caixão.

É curiosa a relação dos malgaxes com a morte que, aliás, consideram a parte mais importante da vida. As exéquias dos membros da tribo Antaisaka têm tempos rigorosamente marcados. A um primeiro sinal todas as mulheres choram, a um 2º calam-se e é a vez das crianças cantarem para, logo a seguir, todos dançarem.

Mas bem mais curioso é o famadihana, traduzido um pouco livremente por "revirar os mortos", cerimónia própria dos Betsileo e dos Merina, que tem lugar 4 a 7 anos após a morte. É, ao contrário do que se possa pensar, uma ocasião alegre, uma oportunidade para comunicar com o espírito do defunto.

No dia escolhido pelo adivinho-astrólogo, sempre na estação seca, entre Junho e Setembro, familiares e amigos dirigem-se ao túmulo familiar e hasteiam a bandeira malgaxe. Os restos do antepassado são, então, retirados, lavados, embrulhados numa nova mortalha e transportados até casa onde os parentes próximos aproveitam para tocar, conversar, pedir a benção, pôr ao corrente das notícias da família, da aldeia. Pedaços da antiga mortalha são disputados pelas jovens e mulheres em idade fértil e colocados debaixo do colchão para garantir uma prole numerosa.

A banda contratada toca, o rum corre, a comida é servida. Os familiares mais chegados colocam alternadamente o corpo aos ombros e com ele dançam e pulam. A festa dura cerca de uma semana, é feita por famílias ricas ou pobres, dos meios rurais ou urbanos e é cara, muito cara. Ao custo da nova mortalha, de seda, há que juntar comida e bebida de algumas centenas de convidados, pagamento à banda e ao adivinho, taxas administrativas e presentes para a aldeia. Finalmente o corpo regressa ao túmulo onde é fechado até ao próximo famadihana.

Cereja em cima do bolo, tivemos a sorte de deparar com uma celebração e pudemos assistir, em silêncio e sem ousar fotografar, à dança frenética de uma mulher que abraçava um defunto envolvido numa esteira. Pela energia com que pulava(m) quis-nos parecer que, no final da cerimónia poucos dos ossos estariam no lugar correcto.

quinta-feira, setembro 20, 2007

A estrada dos mil

Eram mil. Mil guerreiros que defendiam o burgo a que foi dado o nome de Antananarivo, a cidade dos mil. Mil os que no século XVII partiram à conquista dos reinos do oeste por caminhos que são hoje a estrada razoavelmente alcatroada que seguimos. A estrada dos mil, pois claro!
Guerreiros de outros tempos não encontrámos, mas cruzámos verdadeiros resistentes da estrada, velhos Renault 4, Peugeot 404 e 403, Citroen 2 Cv e arrastadeiras que, apinhados de um número impossível de gente, bens e animais, lutam diariamente com as profundas crateras da maior parte das estradas e pistas de Madagáscar: os "taxi-brousse".

Passámos vulcões e lagos, montanhas feridas de vermelho pela erosão que a desflorestação permite. Aos poucos descubro o país que visitei em 2003: as carroças puxadas por zebus, as concorridas vendas à beira da estrada, as ruas caóticas, o sorriso do povo malgaxe.

Ah!, que bem que sabe reeencontrar os amigos!





domingo, setembro 16, 2007

Tsy malagasy azoako


Como não podia deixar de ser, a língua malgaxe reflecte a miscigenação. Com raízes malaio-polinésias, foi ao árabe buscar os dias da semana e termos associados ao comércio, ao banto africano os nomes de muitos animais. Com o francês, por vias da colonização, tem uma relação privilegiada e ao inglês pediu emprestado os nomes dos meses e muitos outros.

Numa primeira análise parece ser uma língua simples, quase infantil. Como os verbos em geral não se conjugam e precedem o sujeito, a tradução directa não deixa de nos fazer sorrir. Por exemplo, "Vou comprar uma galinha amanhã" diz-se "futuro comprar galinha eu amanhã". Ou "ontem apanhei um avião" que se traduz à letra por "passado partir carro-voador eu".

Mas não se julgue que é uma língua fácil, tem subtilezas que, pelo menos, para nós, ocidentais, são verdadeiros quebra-cabeças. Observe-se o que se passa com os pronomes. A 2ª pessoa do singular não é um simples "tu". Os malgaxes usam palavras diferentes quando os dois interlocutores são dois rapazes, duas raparigas, um rapaz e uma rapariga, dois jovens adultos, um homem e uma mulher, .... Quando duas pessoas falam de uma terceira, aquilo que para nós é um normalíssimo "ele" ou "ela", varia, para os malgaches, não só com o sexo, a idade, o grau de intimidade mas também com a distância a que a pessoa se encontra. Se é quase nula, se é pequena, grande, muito grande, desconhecida...

Não, não é fácil!


Por isso as minhas tentativas de aprender malgaxe ficaram-se na memorização de umas quantas palavras indispensáveis e uma dezena de frases e expressões. Esforços que foram sempre recompensados com um olhar de espanto e um sorriso aberto seguidos de uma torrente de palavras malgaxes, incompreensíveis para mim, e que me obrigava a dizer a frase mais útil que aprendi:

"Tsy malagasy azoako!", ou seja, "eu não falo malgaxe!"

quarta-feira, setembro 12, 2007

O povo malgaxe

Crê-se que os primeiros homens terão chegado a Madagáscar há cerca de 2000 anos vindos da Malásia e da Indonésia. Seguiram-se-lhe árabes, africanos e europeus, dos quais os portugueses foram os primeiros.
A mistura singular criou um povo com características físicas, crenças e tradições muito variadas. São, ao que parece, 19 milhões. Esse é, pelo menos, o número da última "estimativa oficial". Estima-se também que 3/4 desta estimada população viva em zonas rurais, áreas que incluem não poucos locais de difícil acesso e em que aldeais inteiras escapam ao crivo do recenseamento.
Estão divididos em 18 grupos étnicos que, mesmo nos dias de hoje, mantém fortes identidades culturais, costumes e tradições que os distinguem dos outros.


E assim é que os Merina, das Terras Altas, constroem túmulos de tijolo, decorados com pinturas que retratam as características ou a profissão do defunto, enquanto os Sakalava, a leste, os enfeitam com esculturas de madeira, geralmente de cariz erótico.
Para os Betsileo, do centro, o zebu é fonte de alimento mas para os Bara, povo do sul dedicado à pastorícia, é um animal sagrado, utilizado apenas em sacrifícios. De tal modo o animal é aí prezado que o roubo de uma rês, punido muitas vezes com a morte, é considerado um acto de coragem sem o qual um rapaz não pode aspirar a encontrar companheira.


sábado, setembro 01, 2007

Madagáscar - o regresso (1)

O regresso a Madagáscar, onde já havia estado em 2003, foi como que uma viagem a 3 tempos:
Uma primeira parte no "oeste selvagem", com 5 magníficos dias de canoagem no rio Manambolo que nos levaram às gargantas e aos fabulosos Tsingy de Bemaraha (e não só...).
Seguiu-se-lhes o norte. Muito mais turístico e com um turismo totalmente diferente, onde houve tempo para visitar reservas naturais e para uns dias de praia em águas com uma extraordinária profusão e variedade de peixes.
E, por último, o leste, a tranquilidade do canal de Pangalanes e os muitos close-encounters com lémures.
Mas, nada melhor que abrir o diário de bordo: