domingo, julho 31, 2011

S'il vous plait ... dessine-moi un mouton!

"S'il vous plait ... dessine-moi un mouton!", dizia o vinil que dançava no velho gira-discos.
Estava numa aula de francês e, tanto quanto me lembre, foi a única vez em que "ouvi" o Petit Prince a falar. O autor da história, Antoine de Saint-Exupéry, descobri-o mais tarde, nas páginas de Vol de Nuit, Terres des Hommes, ...


Nasceu em berço de ouro e partilhou com os irmãos uma infância feliz passada nos castelos da família aristocrata. Da mãe bebeu uma educação humanista, recheada de valores que honraria toda a vida: honestidade, respeito pelos outros.
O fascínio pelo ar começou por volta dos 12 anos quando as férias da família o levaram para perto de um aeródromo e lhe permitiram a admiração pelos aviões, longas horas de conversa com os mecânicos e o baptismo de vôo.
Piloto da que viria a ser a Aéropostale e transportou correios e esperanças para o Senegal e, mais tarde, na Argentina. A integração da companhia na recém-nascida Air France deixou-o em terra, altura em que se dedicou ao jornalismo de grande reportagem que o levou ao Vietname e Moscovo. Foi a 2ª GG que o trouxe de novo aos céus.
A 31 de Julho de 1944 descola da Córsega para o que foi o seu último vôo.


Durante muitos anos a sua morte esteve envolvida em mistério. Avaria técnica? Suicídio? Abatido pelos alemães? Só em 2004 foram encontrados os restos do seu avião e em 2008 o piloto alemão Horst Ripper, então com 86 anos, confessou ter sido o autor dos disparos que o destruiu.


(Aguarelas de Hugo Pratt)

segunda-feira, julho 25, 2011

O canal alternativo


Construído que foi o canal em tempos em que os motores pertenciam ainda ao reino da ficção científica e sendo a vela impraticável, os barcos avançavam pela força de homens ou cavalos que os puxavam pela margem, seguindo um caminho de terra que bordejava o curso de água. A função deu-lhe o nome : chemin de halage, ou, em português, caminho de sirga.

 
Se  a nossa viagem tivesse sido feita há uns séculos bem podíamos ter sido protagonistas de episódios como o que Jerome K. Jerome descreve no seu "Three men in a boat"*:

Of all experiences in connection with towing, the most exciting is being towed by girls.  It is a sensation that nobody ought to miss.  It takes three girls to tow always; two hold the rope, and the other one runs round and round, and giggles.  They generally begin by getting themselves tied up.  They get the line round their legs, and have to sit down on the path and undo each other, and then they twist it round their necks, and are nearly strangled.  They fix it straight, however, at last, and start off at a run, pulling the boat along at quite a dangerous pace.  At the end of a hundred yards they are naturally breathless, and suddenly stop, and all sit down on the grass and laugh, and your boat drifts out to mid-stream and turns round, before you know what has happened, or can get hold of a scull.  Then they stand up, and are surprised.


“Oh, look!” they say; “he’s gone right out into the middle.”

  They pull on pretty steadily for a bit, after this, and then it all at once occurs to one of them that she will pin up her frock, and they ease up for the purpose, and the boat runs aground.

You jump up, and push it off, and you shout to them not to stop.

“Yes.  What’s the matter?” they shout back.

“Don’t stop,” you roar.

“Don’t what?”

“Don’t stop—go on—go on!”

“Go back, Emily, and see what it is they want,” says one; and Emily comes back, and asks what it is.

“What do you want?” she says; “anything happened?”

“No,” you reply, “it’s all right; only go on, you know—don’t stop.”
[...]
“I see.  Give me out my red shawl, it’s under the cushion.”


You find the shawl, and hand it out, and by this time another one has come back and thinks she will have hers too, and they take Mary’s on chance, and Mary does not want it, so they bring it back and have a pocket-comb instead.  It is about twenty minutes before they get off again, and, at the next corner, they see a cow, and you have to leave the boat to chivy the cow out of their way.


There is never a dull moment in the boat while girls are towing it.


Hoje, que os barcos avançam impulsionados pelos cavalos do motor, os caminhos de sirga são uma mais valia para o canal. Protegido do sol pela sombra dos plátanos, choupos e pinheiros que estabilizam as margens, o caminho convida  a passeios a pé, de bicicleta, a cavalo, à pesca ou à simples contemplação dos barcos que passam, das garças, patos e ratos almiscarados que fazem do canal a sua casa.

É um outro olhar, uma outra descoberta. O Canal du Midi de bicicleta pelos caminhos de sirga? Huummm, quem sabe, um dia....


* A versão integral de "Three man in a boat", cuja leitura se recomenda vivamente, está disponível no Project Gutenberg.

sábado, julho 23, 2011

Abre-te Sésamo

Para quem não conhece, explique-se que uma comporta é uma obra de engenharia que permite que barcos subam ou desçam montanhas. A ideia nasceu com Leonardo da Vinci e é simples: constrói-se uma tina fechada por portas a montante e jusante, e enche-se ou esvazia-se para permitir que as embarcações subam ou desçam, ultrapassando os desníveis naturais do curso de água. Uma espécie de caverna de Ali Babá que abre e fecha não com palavras mágicas mas com o toque de uns botões.

Riquet fê-las ovais, em forma de azeitona, forma que melhor sustém o peso da terras. O orçamento ditou as dimensões, 30 metros de comprimento e 5,6  a 11 de largura, e obrigou a que fossem construídas barcaças especiais para lá poderem entrar: 29 metros da proa à popa.


A nossa primeira comporta surge com o pequeno almoço do primeiro dia de verdadeira navegação. E a primeira comporta é angustiante. Ninguém sabe muito bem o que, como e quando fazer. Entramos muito devagar tentando manobrar sem demasiados toques, olhamos para os outros barcos para ver como fazem. Os cabos voam, escorregam, quem salta para terra procura um cabeço para os amarrar. As portas traseiras fecham-se, a água começa a descer lentamente e o ar sai dos pulmões ao mesmo ritmo, num alívio prematuro pois nem 700 metros tinham passado e já outra nos espera. E é dupla, não, tripla!


Depois... habituamo-nos e, melhor ou pior, são 52 as comportas que faremos nos 100kms e 6 dias da viagem. Ou nos 5, descontando o dia de repouso forçado pela greve do pessoal que as opera.


A passagem de uma comporta é também um dos momentos em que retomamos a ligação a terra, em que o nosso universo vai um pouco além de nós e o barco. Trocam-se dois dedos de conversa com as tripulações que, como nós, aguardam a vez para entrar na eclusa, com os curiosos que se abeiram para assistir às manobras e se espantam com a a equipa quase só feminina - são italianas, dizia alguém - ou com o responsável pelo funcionamento da comporta. Olham-se com curiosidade as esculturas naifs feitas pelo antigo motorista de TIR Joel Barthes, que agora tem a seu cargo o abrir e fechar as portas de l'Aiguille.


No final acenamos um obrigado  que o "comportageiro" mal vê, ocupado que está a enviar as informações de passagem à comporta seguinte e avançamos no canal até à próxima.

domingo, julho 10, 2011

O túnel do tempo

O dia D chegou! O pedaço do canal que vai acolher os nossos primeiros quilómetros não foi desenhado por Riquet pois Carcassonne não quis co-financiar as obras. Vendo o sucesso comercial que o canal trouxe às povoações por onde passava, mudou de ideias e pagou a construção de um desvio, que abriu apenas em 1810.

Partimos com a dignidade de um Queen Mary a deixar o porto de Nova Iorque, apesar de na margem faltarem familiares e amigos chorosos a acenar lenços de despedida.

Nas nossas mãos, inexperientes e nervosas, estão os 12 metros do Silver Surfer, ou melhor, à la française, do Silvérr Siuférr. Primeiros metros, primeiros ziguzagues até que mão se "faça" e o barco avance mais direito.

Depois ... foram 6 dias em que o tempo parou e navegámos a não mais de 8 quilómetros por hora, deslizando num bucólico túnel de verdura, o ronronar do motor a misturar-se com o canto das cigarras que o tempo quente acordou.

terça-feira, julho 05, 2011

Foi assim que aconteceu...


Fomos loucos, sim senhor!!

Loucos por 6 dias.
Loucos que, sem experiência de marear e trocando cabos por cordas, conquistámos o Midi.
[...]

Post surripiado a Rutix, para continuar a ler aqui.

domingo, julho 03, 2011

Canal des Deux Mers, aka Canal du Midi

Caro Senhor, proponho a construção de um canal que estabeleça a ligação entre o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo, para permitir que os nossos barcos de mercadorias não tenham de contornar a península Ibérica evitando, assim, o mau tempo, os canhões espanhóis e os ataques dos piratas que enxameiam o estreito de Gibraltar.

Terá sido, grosso modo, este o teor da carta que, a 15 de Novembro de 1662, Paul Riquet escreveu a Colbert, homem forte do rei Luís XIV. A proposta era arrojada mas aliciante e avançou. Riquet ordena que se desviem rios e ribeiros para encher a barragem de Saint-Férrol onde mais de 6 milhões de metros cúbicos de água vão regular o nível do canal, retendo as cheias do inverno e compensado no tempo quente as perdas devidas à evaporação.

A tarefa é gigantesca e são necessários quase 16 anos para construir as 63 comportas (simples, duplas, ... e até sêxtuplas), 126 pontes, 7 pontes-canal, 55 aquedutos, 6 barragens e 1 túnel que permitiram que os primeiros barcos atravessassem os 241 quilómetros do canal.

O progresso, a construção de vias férreas e de estradas, quase o destruíram. Quando, em 1989, a última barcaça comercial deixou as suas águas, o canal parecia ter o abandono como futuro, mas o turismo fluvial restituiu-lhe a vida.

Hoje são cerca de 10 000 os barcos que cada ano cruzam as suas águas. Em 2011 um deles foi o nosso.