sábado, fevereiro 18, 2012

Fragão dos Corvos (Serra da Estrela)



A manhã pintava-se com as suas melhores cores. Um sol de prata a arder estadeava-se em céu azul com tanta limpidez, que a grande redoma dir-se-ia mais espaçosa do que noutros dias; e aluz natural, vinda do alto, desquitava a montanha das suas duras linhas, diluía as suas rudezas de outras hora, fazendo branquejar, num transparente flux, o eterno negro dos cântaros e de quantos brutos penhascais cortavam o passo aos olhos.

Ferreira de Castro, in A lã e a neve

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Covão da Ametade (Serra da Estrela)


A bruma subia cada vez mais deixando a descoberto os medonhos contrafortes do berço do Zêzere. Uma rotunda imensa, grave, misteriosa, de contornos imprevisíveis, começava a aparecer, como se as névoas do princípio do Mundo a abandonassem de vez. Iam-se desvendando enormes moles de granito, ao fundo, à direita, à esquerda, pedras de todos os milénios, bastiões de um só bloco e rude traça, que se apresentava soberba, numa majestosa solenidade. Essa muralha ciclópica e irregular, cheia de arestas, de vincos, crescia rapidamente, através do nevoeiro que se retirava. Cada vez se apresentava mais alta, mais arrogante cada vez - e assim tapada nos cimos dir-se-ia não ter fim.
[...]

O anfiteatro colossal em que eles se encontravam exibia-se agora, em toda a sua imponência. Era de uma grandiosidade áspera, severa, essa rotunda propícia para um templo de mitos alpestres. Estava metida entre assombrosas florações de granito e terminava no Cântaro Magro que lembrava a carcassa de imensurável castelo de outrora, do qual se aproximassem fulminantes coriscos.


Dir-se-ia que a natureza quisera defender e impregnar o mistério da nascente do Zêzere - fechando-a como uma fortaleza. E, contudo, parecia que o rio fora apenas um pretexto. Era uma pobre, trémula fila de água, ora muito estreita, ora mais larga, ás vezes quase invisível, que se lançava lá do alto por um sulco ou diáclase da rocha negra, aberta para lhe dar melhor caminho. Ao seu lado, porém, tudo se agigantava.

Ferreira de Castro, in A lã e a neve

quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Brasil...



"Se acertar todas as capitais que me perguntares compras farinha para o meu irmão bebé?"

Olhei para o meu interlocutor, meio-tostão de gente, sorriso branco que sobressaía num rosto moreno, uma mãozinha minúscula que alternava entre o puxar as minhas calças e limpar o líquido viscoso que teimava em sair do seu nariz. A proposta era irrecusável e o desafio começou: "Vou perguntar-te dez. Se acertares todas, ganhas!"

Portugal, claro, e Líbia, o Mali, o Uruguai. E, sem qualquer problema ou hesitação, o pirralho debitou os nomes: Lisboa, Tripoli, Bamako, ...
E chegamos à última :"Então, e Madagáscar?"

O sorriso branco desapareceu atrás dos lábios mascarrados de pobreza. O olhar turvado de desalento (e o meu de ternura) e a vozinha abafada que sussurrou um arrastado, desanimado, tristemente derrotado "I doooooont know...". O prémio perdido ali no último instante, a morte na praia, as lágrimas dificilmente contidas.

Mas eis que enche o peito de ar e de orgulho e a resposta chega quase gritada e com sabor a prémio: Antananarivo.
Terá sido impressão minha ou, nesse instante, as ruas de Katmandu encheram-se de sol?


E com este texto abrem-se as portas do Dom Pedro Laguna Hotel, no Ceará.

 


quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Lágrimas da Estrela



Anónimas folhas retinham ainda as lágrimas da noite, que o sol, agora, irisava.

Ferreira de Castro, in A Lã e a Neve