sábado, maio 22, 2010

El Tatio

São 3h30m da manhã e à água do duche pouco deve faltar para congelar. Se o frio não impedisse o funcionamento dos meus neurónios teria regressado ao relativo aconchego da cama. Fazia mal porque o que vou rever merece estes sacrifícios. Um café bem quente, umas bolachas engolidas à pressa e fazemo-nos à pista, longa e sinuosa.

Há cinco anos escrevi no diário de viagem: "Nunca tive tanto frio na minha vida!" Não sou caso único. No seu livro Full Circle o Monty Python Michel Palin reforça:


"It´s also dreadfully cold! as cold as I have been on the journey so far, Alaska included. [...] At 14,000 feet ice forms on the inside of the windscreen."


Ainda é noite, estou a 4300 metros de altitude, o solo que piso está pejado de geysers, a temperatura exterior é de -20ºC e estou em El Tatio. Todo o frio e desconforto é esquecido assim que o sol nasce e os jactos de água e vapor se elevam, enormes, em contra-luz, no azul puro do céu. Caminhamos no inferno, entre colunas de água e vapor que se elevam a vários metros, contornamos as pequenas caldeiras cheias de água fervente ou lamas borbulhantes, pisando com precaução as placas de gelo. Todo o cuidado é pouco - o solo é muito instável e há registos de pessoas engolidas por buracos que se formam de repente.

Os primeiros raios de sol inundam o campo, o contraste de temperaturas atenua-se, as manifestações telúricas acalmam-se.

É tempo de descobrir as mil cores dos depósitos formados pelas águas ricas em minerais, de cozer um ovo e aquecer um chocolate numa das muitas correntes escaldantes, e, para os mais corajosos, de desafiar o frio e mergulhar nas águas quentes de uma piscina natural.

terça-feira, maio 18, 2010

Vale da Lua

As dunas que subimos em 2004 ainda lá estão mas já não é permitido subi-las, um carreiro de pedra e terra leva-nos ao alto da colina sem as danificar. Não há tanta gente como em 2004 nem sequer lá estão grupos de asiáticos que, nessa altura, acompanhavam o pôr-do-sol com gritos e aplausos. Está-se em silêncio ou a conversar baixinho como que por respeito pela vetusta idade do sítio.

À nossa volta as paltaformas de pedra e areia misturam-se com lagos secos que o sal salpicou de branco. O sol começa a aproximar-se do horizonte, o céu e as montanhas pintam-se, as diferenças de distância traduzem-se por cores numa paleta de vermelhos, laranjas e azuis.

Ao longe, sereno como sempre, o vulcão Licancabur é o último a deixar de receber os raios do sol.
Chama-se Vale da Lua e dizem que banhado pela luz do luar é absolutamente irreal.


quinta-feira, maio 13, 2010

Vale da Morte

Conta-se por estes lados que dois amigos conversavam sobre a falta de água no Deserto de Atacama e um dele comenta: "Gostava que chovesse. Não por mim, pois já vi chover uma vez, mas pela minha neta que nunca viu."

A história terá algum exagero mas reflecte a aridez da região que a NASA considera como a mais seca do planeta. A limpidez dos céus e a reduzida ocupação humana fazem deste deserto um lugar ideal para a instalação de observatórios astronómicos, tenham eles fins científicos ou meramente lúdicos.

Chamam-lhe Vale da Morte mas para os turistas que somos a aridez transforma-se em espectáculo. A natureza brincou e abre perante os nossos olhos um festival de gargantas e dunas, de rochas enrugadas pelos movimentos telúricos ou esculpidas pelo vento, de cor ocre que brilha sob o fortíssimo e contrasta com o azul puro dos céus.


domingo, maio 09, 2010

Mãe há só uma; pai ...


"E até falo português!"
A frase fez-me deitar um olhar divertido ao meu interlocutor, Manolo, que me seguira pela Plaza Cólon tentando ganhar uns pesos mostrando-me a cidade. O seu verdadeiro nome até era Manuel mas resignara-se e adoptara o castelhano Manolo que os amigos lhe chamavam.
O português aprendeu-o com o pai, um embarcadiço brasileiro que trocou o embalo do mar pelos braços de uma linda chilena. Bonita história.

Mas não, eu não precisava de guia nem de tradutor e Manuel-Manolo foi à sua vida, abordando de imediato e em inglês um casal a quem disse conhecer a língua de Sua Majestade graças ao pai, um marinheiro ... inglês.

Antofagasta, onde estou, já pertenceu à Bolívia mas, depois da Guerra do Pacífico no final do século 19, passou a ser solo chileno. O peso dos ingleses que se instalaram para explorar as minas da região faz-se sentir no bairro de casas vitorianas, no museu dos caminhos de ferros, nas pinturas das paredes que recriam outros tempos, na réplica do Big Ben instalado na Plaza Cólon.


O centro é uma animação: amanhã é dia da criança e as ruas enchem-se de músicos e acrobatas, de vendedores e compradores, de crianças que correm por todo o lado.

A paz encontramo-la no porto pesqueiro onde dois ou três leões marinhos residentes se empenham no jogo de roubar um peixe a algum pescador distraído.

quarta-feira, maio 05, 2010

Tocopilla, cidade-sorriso

O nevoeiro acentua a tristeza cinzenta da cidade, a areia negra da praia não ajuda e, no entanto, Tocopilla consegue encher-nos de sorrisos.
Os habitantes da costa, ou pelo menos estes, contrastam na sua boa disposição com os reservados Atacameños. Aqui todos querem falar com os estrangeiros, fazer perguntas, mostrar o que fazem, só pelo prazer de uns minutos de conversa.

A máquina fotográfica a tiracolo chamou a atenção de David que, não contente em se fazer fotografar, foi chamar os colegas que regressavam da pesca. Nino foi mais longe e arrastou-me para o mercado, orgulhoso do peixe que enchia a sua banca.

Terão sido eles que transformaram o cinzento do dia? Ou o reencontro com o mar, as águas frias do Pacífico a acariciarem o meu pé descalço e os deliciosos filetes de albacora também ajudaram?

domingo, maio 02, 2010

Dura malaquite

Abandonamos o Altiplano para rumar ao Pacífico. Mais do que a diferença de altitude e de paisagem é a mudança de clima que surpreende. Como num avião que inicia a aterragem despedimo-nos do céu azul de Atacama, atravessamos uma camada de nuvens baixas e mergulhamos num nevoeiro cerrado.

Se não fossem uns abutre de cabeça vermelha pousados à beira da estrada e não teríamos ouvido a explosão nem apercebido que estávamos a passar ao lado de uma pequena mina: um túnel escuro e poeirento rasgado na montanha, escorado com barrotes de madeira que parecem querer cair. Uma carreta enferrujada acentua o ar de far-west.

Cá fora dois homens afadigam-se junto a uma grande peneira. Com as mãos distorcidas a que faltam dedos e falanges, agarram os pedaços azuis-turquesa de malaquite e separam-nos da rocha castanha. trabalham em silêncio, repetindo mecanicamente e sem cessar os mesmos gestos.

BUM! Outra explosão e o túnel vomita uma sufocante nuvem de onde sai, como um fantasma, um terceiro homem.

Com passos lentos, arrastados, deixa-se cair num banco improvisado, desenvencilha-se com esforço das protecções e deixa a descoberto os cabelos e o rosto brancos de pó, o olhar carregado de desânimo, o ar exausto, esgotado pelo trabalho duro. Ou pela vida?