sábado, novembro 28, 2009

A melhor maneira de viajar é sentir

Suponhamos, por um momento, que o empregado comercial Fernando Pessoa, o mestre Alberto Caeiro, os dois discípulos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, e ainda o ajudante de guarda -livros Bernardo Soares eram membros da mesma associação secreta de viajantes. Será que o lema da associação, a senha passe-partout dos seus membros, poderia ser outra que não esta? Para que precisa de viajar com o corpo quem tão bem viaja com a alma?


Ah, seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, ir para a Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Ode Marítima, Fernando Pessoa
in Livro de Viagem (Ed. Guerra e Paz)

sábado, novembro 21, 2009

Estrada de Santiago

Tinha uns 12 anos quando a vi pela primeira vez. É certo que nos tínhamos cruzado nas aulas de geografia, que lhe sabia o nome, Via Láctea, e lhe conhecia uma imagem no livro, mas vê-la a destacar-se no céu negro de um qualquer Alentejo, teve tal magia que ainda hoje não consigo deixar de a ver sem recordar o deslumbre daquela noite em que a segui durante longos minutos, através da janela do carro, em silêncio, como se no mundo nada mais houvesse.

Fazia frio, muito, muito frio, quando a vi este verão, num lugarejo perto de San Pedro de Atacama, no deserto que dizem ter um dos céus mais puros do mundo. Uma noite sem lua, sem nuvens. Ouvimos as explicações divertidas de Alain Maury, astrónomo francês estabelecido por estas paragens, e só depois enfrentámos o gelo da noite. E a Via Láctea lá estava, a pintar de magia os céus do Chile. Alain apontava um e outro e mais outro telescópio, fazia-nos descobrir as cores, os tamanhos, as distâncias, ajudava-nos com as fotografias. E que alegria trazer num cartão da máquina um pedacinho do fascínio da Estrada de Santiago!

*******
No site de Alex Mellinger pode ver-se como foi feita esta espantosa montagem fotográfica da Via Láctea toda inteira:



domingo, novembro 01, 2009

Um domingo diferente

O que há de comum entre o deserto e a paralisia cerebral? Nada.

O deserto reduz-nos à nossa verdadeira dimensão: um grão de areia igual a tantos outros, um entre biliões. Aprende-se a olhar para os pequenos nadas que a corrida do dia-a-dia não nos deixa ver: a pedra com uma formação peculiar, a nuvem que flutua sozinha no céu imenso.

Um passeio na ciclovia do Guincho com utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa leva-nos a pensar naquilo com que nunca nos preocupamos, que consideramos adquiridos por tão banais serem para nós: uma gaivota que rasga o azul do céu, a pinha que enche as mãos de cheiro e de resina, a vitória de conseguir abotoar uma camisa. Pequenos nadas que são todo um tudo para quem pouco consegue ter.


A Xana ria, feliz, cada vez que conseguíamos ultrapassar a cadeira da frente, e queria mais... Ouvia atentamente o que lhe contava sobre os fogos em zonas de paisagem protegida, sorria deliciada ao afagar o cãozinho que quem se cruzou connosco lhe estendeu.

Para a Xana e para os seus companheiros foi um dia diferente, cheio de sensações novas, cheio de encanto. Para nós foi muito mais, foi a vida a recordar-nos da sorte que temos.

O que é que o deserto e a paralisia cerebral têm em comum? Nada. Ou talvez uma lição de humildade.

(Obrigada Luís e Manuel da Papaléguas)